Éticas Seculares #1 — Crises de Identidade
(Baseado em Charles Taylor, “Sources of The Self”)
“Quem sou eu!?”… Dizem por aí que entender o que é bom para nós é entender quem somos. Já ouvi dizer, e isso vale o que vale — e normalmente quando se diz “vale o que vale”, o que se quer dizer é que não vale nada. Seja como for, não é surpresa para mim que crises de identidade sejam tão comuns hoje, neste mundo ocidental pós-moderno. Mas esta dificuldade em decidir quais são os nossos valores e a nossa identidade é específica do nosso tempo. Não foi sempre assim, acredite quem quiser!
Em todas as sociedades anteriores que conhecemos sempre existiu um padrão social de espectativas colocadas nas pessoas com relação ao que é certo ou não, o que é uma boa vida ou não. Um membro de uma sociedade heroica (como a Grécia Antiga) podia se perguntar se a sua vida seria suficiente para igualar as histórias dos grandes heróis de quem ouvia falar nas canções do seu povo. Um cristão da Idade Média podia se perguntar se a vida da fé cotidiana era suficiente para ele ou se não desejaria perseguir alguma vocação mais espiritualmente rica. Hoje em dia não temos nenhum padrão deste género.
Face a esta situação, alguns decidem se fixar numa maneira tradicional já decidida e articulada de entender o mundo. Outros, seguindo a onda do pluralismo, preferem viver a sua vida sem prenderem os outros ou serem presos por eles. Uns terceiros até adotam as tradições, mas com consciência das suas limitações, com uma adesão sempre hesitante. Estes terceiros continuam sempre como se “em busca”: muitas vezes desenvolvendo as suas próprias versões das tradições que adotam, combinando tradições diferentes de formas incomuns. Mas a partir do momento em que encontrar um entendimento do bem se torna uma busca, começa a existir a possibilidade de falharmos nessa busca. E falhar em encontrar este bem a partir do qual entendemos o que somos é falhar em ter sentido para a vida.
O nosso problema é, com efeito, sermos livres de mais. Com tantas possibilidades abertas, torna-se cada vez mais difícil fecharmo-nos em umas ou outras e dizermos: “isto sou eu”. A ideia de que nós podemos escolher sermos quem quisermos torna impossível termos alguma razão para escolhermos ser uma coisa e não outra — afinal, porquê esta razão e não outra? Parece que nascemos num ponto de imparcialidade absoluta e não podemos sair dele sem fecharmos os olhos de propósito, sem um “salto de fé”, por assim dizer.
Mas viver sem horizontes para onde olhar é literalmente impossível. Quando nos perguntamos sobre a nossa identidade, sobre quem nós somos, o que procuramos como resposta são as coisas de maior importância para nós. A nossa identidade é definida pelos nossos compromissos e identificações, pelo que nos permite tomar uma posição perante o mundo. A nossa interpretação do mundo é implicitamente ao mesmo tempo uma interpretação de quem nós somos — já que observamos e interpretamos o mundo sempre do nosso ponto de vista. Assim, nós somos, pelo menos em parte, as interpretações que fazemos de nós mesmos.
Algo importante de entender é que estas interpretações só fazem sentido dentro de uma coletividade: é sempre por referência aos que nos rodeiam e à nossa posição perante eles que nós somos capazes de nos definir. A nossa identidade é definida, inevitavelmente, em forma de diálogo com o mundo à nossa volta. Não existe identidade definida de forma imparcial: é o nosso ponto de partida, o ponto a partir do qual nós falamos, que nos define — mesmo que a nossa reação àquilo que nos rodeia seja de negação.
Isto nos possibilita entender, por exemplo, a tradição Americana de “sair de casa”: em Connecticut, em tempos remotos, todos os jovens tinham de ter passado pela sua própria conversão e estabelecido uma relação pessoal com Deus antes de se tornarem membros da igreja. Na América, os jovens hoje têm de sair de casa e da estrutura familiar para procurar uma vida e caminho para si próprios. O facto de isso ser uma tradição não minimiza a independência dos indivíduos, apesar de ser verdade que esta independência pode se tornar superficial, se massas de pessoas decidirem expressar a sua individualidade de formas estereotipadas. Mesmo assim, o ponto é que mesmo quando a tradição em que somos criados é uma de independência, ainda somos criados numa tradição.
É importante entendermos as nossas origens para sabermos quem somos, mas a tradição é só o ponto de partida: quando estamos perdidos (uma crise de identidade, afinal de contas, não é mais que estar perdido), podemos não saber onde estamos — não conhecer as nossas tradições — ou não saber para onde ir. Assim, para entendermos quem somos não basta sabermos o que é bom, mas também sermos capazes de entender o nosso passado e planos para o futuro como parte de uma narrativa contínua. Falhar em encontrar sentido para a vida, portanto, pode ser a incapacidade de encaixar a nossa vida numa narrativa coerente. Uma vida sem sentido é uma vida sem unidade: uma coleção de eventos sem qualquer coisa que os ligue, uma vida que não consegue ser uma história.
Na vida, só não está perdido quem sabe de onde veio, onde está e para onde vai. Para isso, temos de saber que posição tomar em relação aos bens que nos rodeiam. Temos de encontrar um ponto de referência, um pilar, um horizonte moral.

Dentro dos bens que reconhecemos e usamos para orientar a nossa vida, temos alguns, talvez mesmo apenas um, que é incomparavelmente maior, aquele segundo o qual medimos os outros, aquele que usamos como padrão principal para julgar a nossa distância quanto ao bem. Chamemos a estes bens os “superbens”. Estes superbens são fonte de conflito na vida em grupo, porque são considerados como passos em direção a uma consciência moral superior por aqueles que os abraçam. Mas muitas vezes abraçar um superbem, como por exemplo a ideia moderna de que todos os seres humanos devem ser tratados com igual respeito, independentemente de sexo, raça, cultura ou religião, exclui certas ideias sobre as virtudes e vícios associadas a outro superbem, a vida familiar tradicional.
Que um bem passe por cima dos outros e tome a posição de superbem é o que um senhor chamado Friedrich Nietzsche chamou de “transvaloração de valores”: muitas vezes o novo superbem chega mesmo a fazer-nos ver os bens antigos agora como tentações. Ora, a existência destas transvalorações, destas mudanças aparentemente sem razão dos valores considerados mais importantes, faz com que os valores que estão em vigor pareçam arbitrários — essa era a posição de Nietzsche.
Assim, existe uma tendência a pensar que, se existe uma moralidade objetiva, os superbens não podem fazer parte dela (de onde surge a *maldita* ética procedimental — mais sobre isso no capítulo #6). Mas os superbens são aquilo que usamos para nos orientar na nossa vida, aquilo que nos fornece um sentido de identidade, que nos dá uma posição no mundo, nos ajuda a fazer sentido do passado e fazer planos para o futuro. Negá-los um lugar na nossa moralidade objetiva é bastante perigoso — é dizer que não importa para onde vamos, mas apenas o modo como vamos… é uma ética que nega aos seus seguidores uma direção, oferecendo apenas um método a ser aplicado.
Este tipo de rejeição é ainda mais forte por influência de pensadores Neo-Nietzscheanos (ou seja, que vieram depois de Nietzsche e foram influenciados por ele, levando as suas ideias ainda mais longe em algum respeito ou outro). Estes procuraram mostrar como várias formas de exclusão social e dominação estavam implícitas na própria essência de alguns superbens. Assim, os superbens são vistos apenas como estratégias dos grupos opressores para oprimir os oprimidos, em vez de mapas que nos guiam em direção ao bem. O cinismo deste tipo de visão é entristecedor.
Mesmo assim, devemos evitar cair no erro destes senhores, de pensar que, simplesmente por os nossos superbens serem fruto de sentimentos parciais, que então não podem ser racionais. É certo que muitos dos superbens ao longo da história não são respostas genuínas, mas muitos são. Não é pela sua parcialidade que os superbens podem ser ditos ilegítimos. Não existem critérios independentes de qualquer ponto de vista para fazer juízos morais: estamos sempre a falar de algum lado. Mas isso não é problema nenhum: o raciocínio prático, o tipo de raciocínio que usamos para fazer decisões, não considera as coisas a partir de um ponto de vista imparcial. Ele é comparativo por natureza.
O raciocínio prático (ou seja, o que usamos para pensar sobre o que é bom ou mau, certo ou errado) procura estabelecer, não que uma posição é correta absolutamente, mas apenas melhor que outra. O ponto de um argumento prático/ético é mostrar que a transição de uma visão para outra é uma maneira de reduzir um erro. A origem desse tipo de argumento está na narrativa biográfica. Ao longo da nossa vida e experiências, podemos ganhar alguma sensibilidade que antes não tínhamos e que vemos agora como um ganho epistémico. Posto de forma simples: aprendemos com os erros. É isto o que significa pensar moralmente.
Quando temos uma substituição de um superbem por outro, somos confrontados com o facto de que o nosso modelo anterior estava errado, de forma que o nosso modelo actual pode estar errado também. A insegurança de a nossa visão poder estar errada faz com que desejemos uma visão que *não pode* estar errada nunca. Mas procurar critérios assim seria mudar de assunto — seria deixar de discutir ética. Falar de moralidade é falar de sentimentos e perspetivas parciais. Sem qualquer intuição moral, eu seria completamente incapaz de entender qualquer argumento moral. A única maneira de me convencer é mudar a minha leitura da minha experiência moral e da minha própria vida.
Assim, apesar de a nossa liberdade ser sem dúvida uma responsabilidade que povos de tempos anteriores não carregaram, ela não é uma sentença ao desespero. Ser livre nos dá potencial para nos perdermos tanto quanto nos permite encontrar o caminho por nós próprios. Nesta série de textos vou procurar esclarecer, com a ajuda de Charles Taylor, a origem da nossa liberdade. Entendendo de onde e por que ela apareceu, poderemos compreender melhor quais manifestações de liberdade são autênticas e quais são corrupções.
Primeiro, veremos o que é ser racional e como nasceu a nossa ideia de liberdade: Éticas Seculares #2 — Liberdade e Razão
Segundo, veremos a evolução que a nossa ideia do que é uma boa vida sofreu: Éticas Seculares #3 — A boa vida é a vida bem vivida!
Terceiro, veremos como nasceu a ideia de que cada um de nós tem de encontrar o seu próprio caminho e a sua própria maneira de viver bem: Éticas Seculares #4 — A boa vida é ser artista!
Quarto, veremos as consequências que tudo isto teve na relação do homem com o mundo natural em que vive, e portanto na sua identidade também: Éticas Seculares #5 — Homens sem Mundo?
Quinto, uma conclusãozita: Éticas Seculares #6 — Condenados à liberdade