Liberdade para dentro da cabeça!
Será que o existencialismo é a melhor maneira de entender a nossa vida moral?
Quando eu tinha uns 14 ou 15 anos, depois de muitos vídeos do Richard Dawkins e do Chistopher Hitchens no YouTube, sem contar com uma boa dose de conflito interno sobre o que devia acreditar, dei por mim ateu. Cheguei à conclusão de que a existência de Deus, no fundo, era incompatível com as descobertas da ciência natural moderna. A maior consequência imediata que esta grande e nada incomum transformação pessoal teve em mim foi que eu me tornei um chato. Queria “debater” (ou melhor, repetir os argumentos que tanto me tinham impressionado) contra qualquer um que desse o mínimo sinal de acreditar em Deus. Fora isso, a minha vida seguia como normal.
Foi só um ou dois anos depois que consequências mais graves se manifestaram. Eventualmente me caiu a ficha que não acreditava mais em nenhuma divindade que me desse comandos sobre o que fazer ou indicações sobre como viver a vida. Todos os conselhos que a minha avó me dava, que antes me pareciam tão sábios, agora pareciam pouco mais que ilusões, mentiras reconfortantes sem significado nenhum. Comecei a ler sobre niilismo e existencialismo na wikipédia, eventualmente comprei os meus primeiros livros do Nietzsche e do Camus, por volta dos 17. A crise existencial foi real e estes anos foram os piores da minha vida (até agora).
Hoje, depois de centenas (milhares?) de horas a ler, matutar, quebrar a cabeça e viver filosofia, depois também de uma licenciatura em Filosofia, posso dizer que a minha crise existencial, apesar de ainda ecoar dentro de mim (penso que os ecos nunca vão desaparecer enquanto não aprender a apagar o passado), já passou. Sinto-me grato pelo percurso que fiz e por ter chegado ao ponto em que cheguei, sinto-me grato também pela filosofia existencialista que foi o meu ponto de entrada no que hoje é o meu maior propósito: a busca pela sabedoria.
Foi o existencialismo que me introduziu à filosofia, mas hoje vejo-me cada vez mais simpático a pontos de vista diametricamente opostos ao existencialismo, maneiras de ver o mundo que, para além de fornecerem explicações mais convincentes da nossa realidade, na minha opinião também fornecem uma defesa psicológica muito mais robusta a crises existenciais como a que eu tive.
O que quero fazer aqui é explicar quais as minhas divergências com a filosofia existencialista, de forma geral. Isto não é um trabalho académico então não vou fazer citações e possivelmente apresente sumários pouco precisos das ideias de alguns dos filósofos que vou discutir, tanto em nome da brevidade como também por alguma ignorância. O que vou apresentar é só um esboço da minha visão do existencialismo, pelo que não acho que a natureza pouco sistemática dos argumentos sejam um grande detrimento aos pontos principais que vou fazer.
Então qual é o meu problema com o existencialismo? Na verdade, não posso dizer que exista “um problema”, essencialmente. Em grande parte, as minhas disputas não são tanto nos pontos que os existencialistas afirmam abertamente: Deus não existe e então a vida não tem significado; o que define um sujeito é a sua liberdade absoluta em contraste com o mundo absolutamente indiferente; etc.. É verdade que eu discordo destas ideias, mas acho que abordá-las neste nível de discussão é superficial e não atinge a verdadeira raiz do problema. As verdadeiras questões, penso eu, são: “por que razão a inexistência de Deus torna a vida sem significado?”, “por que razão é a liberdade absoluta e ela apenas que pode definir um sujeito?”.
No fundo, ao meu ver (e obviamente não fui eu quem fez estas análises — vou recomendar bibliografia no fim do texto), o existencialismo é apenas um dos pontos culminantes de uma corrente de pensamento que vem de muito antes. Tanto quanto eu entendo, o problema do existencialismo é o mesmo problema da filosofia moderna como um todo: a divisão radical entre sujeito e objeto, mente e corpo, homem e mundo, razão e natureza. Descartes, Hume, Locke, Kant, Hegel, os existencialistas e até mesmo os positivistas, lidam todos com este problema fundamental.
A raiz deste problema, pelo que entendo do assunto, encontra-se na transição entre o Renascimento e a Idade Moderna, mais especificamente na Primeira Revolução Científica. Foi neste grande ponto de viragem histórica que aconteceu uma enorme mudança de paradigma no que toca ao nosso entendimento do mundo natural. Antes da Revolução, estudar ciência natural era sinónimo de estudar Aristóteles, cujas ideias dominavam os currículos escolásticos desde o século 12, quando as suas obras foram recuperadas e traduzidas para o latim.
O ponto mais fundamental para os propósitos deste texto é que Aristóteles tinha uma concepção fundamentalmente qualitativa da natureza. O mundo natural, portanto, é composto de várias substâncias, cada uma delas possuindo uma essência que faz com que ela seja o que é. Estas substâncias naturais que compõem o mundo são qualitativamente diferentes umas das outras, e estas diferenças são organizadas de forma hierárquica. Substâncias naturais podem ser: mortas e inanimadas, como pedras; vivas e inanimadas, como árvores; vivas e animadas, como animais irracionais; vivas animadas e racionais, como seres humanos. Se uma substância possui tudo o que outra substância possui e mais, então esta é qualitativamente superior àquela. Esta era a visão Aristotélica.
Cada substância, com a sua essência própria, tende naturalmente para um fim: as árvores tendem a criar raízes para fazer fotossíntese, os animais a caçar para comer e reproduzir, os homens a viver em comunidades políticas e contemplar os mistérios do mundo. Para Aristóteles, estes fins fazem parte das próprias substâncias, ser um ser de um certo tipo significa tender para um certo fim.
Esta visão era o zeitgeist que, nos séculos 16 e 17, a Revolução Científica de Galileu, Bacon, Copérnico e companhia atacou implacavelmente. O novo método científico implicava ver a natureza como um domínio completamente neutro e manipulável pelo intelecto e mãos humanas. Galileu disse, famosamente, que o mundo natural era uma obra divina e que a matemática era a linguagem na qual esta obra foi escrita. Esta é uma frase de revolta revolucionária, e foi dita com intiuto consciente de que assim fosse. A matemática, como nós sabemos, é a ciência das quantidades. Para um cientista moderno, não existe, no nível mais fundamental de análise, diferença alguma entre a matéria que me compõe e a matéria que compõe o ar à minha volta, ou o computador em que escrevo.
O entendimento científico que temos do que é a matéria do mundo natural, como diz o famoso físico Roger Penrose, é que ela é composta de moléculas, que são feitas de átomos, que são feitos de núcleos e eletrões, os núcleos são feitos de protões e eletrões, que são mantidos em unidade por gluões, compostos de neutrões e protões, que são feitos de quarks. Mas o que são quarks e eletrões? O melhor que podemos fazer é oferecer uma espécie de proporção matemática: são coisas que satisfazem a equação de Dirac, por exemplo. A matéria, essencialmente, é nada mais que uma proporção matemática: não existe diferença entre mim e um computador porque tudo o que existe no mundo natural é composto de números. Esta é a concepção mecanicista do mundo natural, dentro da qual o mundo natural é visto como um mecanismo regulado perfeitamente pelas leis matemáticas.
Neste mundo, não existem substâncias ou essências, porque tudo é reduzido a números, quantidades. Diferenças qualitativas não fazem sentido. Não faz sentido dizer que uma árvore tende a fazer fotossíntese pela sua natureza porque já não existe o enquadramento conceptual dentro do qual possamos fazer sentido da ideia de uma árvore como uma unidade independente com a sua própria maneira de interagir com o mundo. Pelo menos não aos olhos da física.
Com o mecanicismo, o mundo natural perde o propósito que tinha com Aristóteles e a sua concepção teleológica do mundo natural (teleológica vem de telos, termo grego que significa “fim” ou “finalidade”). Mas se o mundo natural já não tem o significado e propósito que antes tinha, de onde vem o significado e propósito que experienciamos nele? A resposta mais óbvia é dizer que este significado está apenas em nós, que ele é uma projeção nossa para o mundo. Se já não podemos dizer que somos “animais racionais”, como Aristóteles, temos de nos contentar com sermos simplesmente “seres racionais”, res cogitas, como Descartes. Na visão mecanicista, a nossa consciência, que escapa às leis matemáticas, não tem mais lugar próprio no mundo natural. Corpo e alma têm de ser vistos como substâncias distintas mas unidas de alguma forma.
É certo que esta divisão entre sujeito e mundo não nasceu apenas do mecanicismo: a Reforma Protestante da Igreja Católica aconteceu pouco tempo depois e enfatizava muitos pontos extremamente convergentes com a filosofia natural mecanicista. Os princípios principais da Reforma eram o abismo entre o mundo natural, completamente caído em pecado depois do Pecado Original, e o mundo espiritual, onde reside Deus. A nossa salvação depende apenas da nossa fé: este é o princípio sola fide que regia a teologia protestante. Nada que fizermos neste mundo nos ajuda na salvação da alma: posições na Igreja, comer hóstias ou até mesmo boas ações no mundo, são inúteis. (Esta é uma visão radicalizada do Protestantismo e a maioria dos Protestantes tinham visões muito mais moderadas do assunto — incluindo o próprio Martinho Lutero).
Mas o que é que isto tudo tem a ver com o existencialismo? Eu espero que a este ponto as conexões já sejam mais ou menos evidentes. Dada a separação do mundo natural do significado de que ele era antes acompanhado, reservando este significado à nossa racionalidade ou à racionalidade de Deus (e não mais à racionalidade do mundo, que agora era apenas matemática), bastou a eliminação de Deus, que veio com o Iluminismo no século 18, para que o significado se tornasse cada vez mais perdido.
Não é de surpreender que alguém como o Sartre, no século 20, defenda que tudo o que nos é “externo”, o país em que nascemos, quem são os nossos pais ou qual é o nosso trabalho, não passam de correntes ilusórias que nos prendem. Como disse Tyler Durden: tu não és o teu trabalho ou quanto dinheiro tens no banco, não és um floco de neve especial, etc., etc.. A única coisa que nos define, pensa Sartre, é aquilo que não encontramos fora de nós: a nossa experiência de liberdade absoluta dada qualquer situação, a nossa capacidade de escolher entre uma possibilidade infinita de opções.
O “mundo externo”, meros números que não nos dizem nada, não nos pode definir. Se para Descartes somos seres que pensam e nada mais, para Sartre somos seres que escolhem e nada mais. O abismo entre o sujeito e o mundo permanece.
Mas será que esta é a melhor maneira de explicar a nossa experiência do mundo? No momento em que faço uma decisão, será que sou mesmo absolutamente livre? Eu acho que não. Livre, sim. Absolutamente livre, não.
Digamos que estou a caminhar de volta para casa depois de um dia duro de trabalho. Já é 1 da manhã a rua está praticamente deserta. Da passadeira, vejo um carro aproximar-se ao longe, com velocidade considerável. Imediatamente ao meu lado, a uns cinco passos de distância, vejo, não sem algum choque, um carrinho de bebé, com um bebé a chorar ali dentro. Será mesmo que neste momento, ao deparar-me com o carrinho, deparo-me com as infinitas possibilidades que posso escolher e delibero livremente sobre qual a escolha que prefiro? Não. Naquele momento não tenho tempo para pensar: faça o que fizer, faço-o por pouco mais que reflexo.
No momento de decisão, a minha liberdade é praticamente nula. É certo que posso lutar contra as tendências construídas no meu ser ao longo do tempo e vencê-las através de um esforço de vontade, mas estes episódios, pelo menos para mim, são extremamente raros. Quando me deparo com uma situação destas, o que informa a minha decisão é a visão de mundo que eu tenho. Ao longo da minha vida, desenvolvi um certo entendimento das coisas, cultivei certos hábitos e outros não, tive tempo para deliberar sobre o que é certo e o que não é, tive tempo para pensar, por exemplo, se vale a pena correr riscos para salvar alguém, se a coragem é um ideal a ser perseguido por si mesmo, etc..
Este processo de formação da minha visão de mundo depende completamente de fatores “externos”, como o país e a cultura em que cresci, a educação que os meus pais me deram, qual é o meu trabalho e até mesmo a minha posição social. A cada decisão, estes fatores, compondo a minha visão do mundo e os hábitos comportamentais que acabei por desenvolver, restringem quase completamente a minha liberdade: quando olho para o carrinho, a minha atenção pode-se direcionar a coisas diferentes dependendo da minha visão de mundo. Posso ver uma vida em perigo ou um perigo para a minha vida, por exemplo.
A vontade de agir não precisa de vir inteiramente de mim: quando vejo o carrinho de bebé, o próprio contexto da situação, a realidade em si, exige de mim uma certa reação. Eu não preciso de “ter o desejo de salvar o bebé”, mas antes o bebé precisa de ser salvo, então eu faço alguma coisa. A minha liberdade reside (não na escolha que faço no momento antes de agir, mas) na minha capacidade de, ao longo do tempo, repensar a minha visão e lutar para mudar os meus hábitos, ver o mundo de uma maneira mais clara. Mudando a minha visão, passo a agir de forma diferente. Este é o poder da minha consciência.
A alternativa que eu encontrei ao existencialismo, portanto, está em ver que não somos obrigados a ver o mundo como ausente de significado. O significado já se encontra no mundo, mas temos de fazer esforço para descobri-lo, continuamente.
A Revolução Científica foi extremamente benéfica para a civilização Ocidental e para o mundo inteiro também, mas há que dividir as águas. Pode ser que para algumas ciências possamos suspender a crença nas diferenças qualitativas do mundo, mas isto não quer dizer que tenhamos de fazer isso em todos os outros aspectos da vida. Que a física funciona melhor vendo o mundo como quantidade não implica que o mundo é apenas quantidade. Implica só que o mundo é quantidade do ponto de vista da física.
É verdade, contudo, que ver o mundo natural como preenchido de significado levanta a questão de qual é este significado. Se as nossas visões são dependentes de circunstâncias “externas”, então elas não são universalizáveis, e se não são universalizáveis, podem variar entre pessoas com circunstâncias diferentes. Como saber qual visão é mais clara e qual é obscurecida? Nao tenho espaço para discutir isto a fundo aqui. Digo só que a solução do problema para mim está na nossa capacidade racional, que nos permite analisar argumentos e discernir entre eles.
Para uma abordagem muito mais completa dos pontos históricos que mencionei (e muito, muito, muito mais), recomendo a leitura do excelente livro Sources of the Self de Charles Taylor. Para quem preferir algo mais digestível que um livro de 600 e muitas páginas, eu fiz uma série de 6 textos resumindo o que eu tirei do livro: Éticas Seculares.
Para uma abordagem do problema do relativismo moral, recomendo a leitura de livros como After Virtue de Alasdair MacIntyre ou Mind, Value and Reality de John McDowell. Outra vez, eu tenho aqui uma série de textos baseados no livro do McDowell sobre este assunto: Terapia Filosófica