Terapia Filosófica #1 - Como lidar com um cético
É certo que antes de construir precisamos destruir. Mas como fazemos quando encontramos alguém que não se satisfaz com construção alguma? Todos nós conhecemos alguém que não pode ouvir uma opinião sem fazer aquele meio sorriso de quem já esperava ficar surpreendido com a nossa pobre inocência, aquela expressão de desdém de quem vai começar a duvidar das nossas opiniões com perguntas impertinentes. Alguns chamam a esta pessoa um chato, eu vou-lhe tratar por cético (que não é mais que a versão filosófica de um chato). No seu artigo Temptation and Therapy, a minha ilustre professora Sofia Miguens comenta como a tentação de responder aos desafios que o cético levanta estão sempre presentes, mas uma outra alternativa seria oferecer-lhe uma sessão de terapia.
Ninguém é cético por que quer. Assim como os chatos, eles simplesmente se vêm obrigados a ser assim dadas as circunstâncias em que se encontram: a dúvida parece a conclusão mais acertada do seu ponto de vista. Uma corrente de filósofos vinda do ilustre filósofo austríaco do século XX Ludwig Wittgenstein propõe uma nova forma de responder aos desafios do cético, vendo a filosofia como uma forma de terapia. A ideia é, de forma geral, que as nossas crenças em grande parte já estão bem como estão. A filosofia serve apenas para resolver as confusões que nos fazem pensar que existem problemas onde não há problema algum. John McDowell é um destes autores. A sua resposta ao ceticismo consiste em não engajar no desafio do cético diretamente, ou seja, não tentar “refutá-lo”. Para ele a melhor maneira de lidar com um cético é mostrar-lhe como a sua dúvida depende de certas pressuposições que ele faz e que, por sua vez, não são necessárias. Assim podemos voltar ao nosso estado de “inocência” anterior ás dúvidas, mas desta vez sendo capazes de sustentá-lo racionalmente.
Dado um certo problema, a terapia passa por identificar e questionar as nossas pressuposições que passam desapercebidas e acabam por nos levar a este problema. Esta vai ser uma série de 4 partes, na qual vou usar esta estratégia de McDowell, bem como as suas ideias sobre a natureza do mundo e da racionalidade, para tentar convencer um cético imaginário a rever as suas crenças (e falta de crenças). O ceticismo de que vou tratar é especificamente o ceticismo moral.
Ora, como qualquer sessão de terapia, vamos começar com os problemas. A tese definidora do ceticismo é que nenhum código moral é ou pode ser justificado objetivamente. Walter Sinnott-Armstrong, em Moral Skepticism (https://plato.stanford.edu/entries/skepticism-moral/), faz uma divisão das dúvidas céticas em três tipos principais:
a) o ceticismo epistémico,
b) o ceticismo metafísico
c) o ceticismo prático.
Quando dizemos a um assassino que o que ele fez é errado e ele pergunta “como é que sabes?”, ele pode estar a ser cético quanto a duas coisas diferentes. Primeiro, o nosso criminoso reflexivo pode estar a duvidar que qualquer coisa seja certa ou errada, que não existem valores “objetivos” no mundo. Este é o ceticismo metafísico — duvida da existência/realidade de valores no mundo.
Segundo, ele pode estar a duvidar que o seu interlocutor saiba que o que ele fez é errado: pode estar a propor que, mesmo que existam valores no mundo, não temos maneira de os conhecer. Este é o ceticismo epistémico (vem de episteme, termo grego para “conhecimento”) — pode ser errado matar, mas pode não ser, e nós não temos como saber. Albert Camus, o famoso absurdista, é um bom exemplo de cético epistémico.
O cético prático é um caso especial. Ele não se preocupa com a existencia ou o nosso conhecimento dos valores: ele sabe muito bem o que é ser uma boa pessoa ou o que é uma boa ação — ele pura e simplesmente não se importa. O cético prático é o que coloca a derradeira pergunta “Por que devo ser moral?”. Ele duvida que exista alguma razão para que alguém queira agir de forma moral em vez de, por exemplo, perseguir apenas o seu interesse próprio (existe uma grande sobreposição deste ceticismo com uma posição egoísta). Mesmo que as suas ações estejam de acordo com o que a moralidade prescreve, as suas razões para agir assim não são baseadas em nada que não o interesse próprio, ou qualquer outra coisa que não seja “o dever moral”. Muitas vezes, dirá ele, a coisa mais racional a fazer não é aquela que a moralidade recomenda.
Quem ficou curioso que vá ler os próximos textos.