Éticas Seculares #5 — Homens sem mundo?

(Baseado em Charles Taylor, “Sources of The Self”)

Raphael Mees
14 min readMay 11, 2021

As crises existenciais são a maior epidemia do mundo ocidental. Nada é tão familiar como o bom e velho sentimento do absurdo, da insignificância da vida humana e da falta de direção — que bate mais forte em alguns, é certo, mas incomoda qualquer um com alguma inclinação para o lado mais reflexivo. Uma crise existencial pode ser causada por inúmeras razões, mas todas elas se resumem ao mesmo problema essencial: a relação do indivíduo com o mundo em que vive. Este é um problema moral por natureza, ao contrário do que alguns possam pensar (nomeadamente, os que restringem a moralidade à distinção entre ações boas e ações más).

Neste assunto eu gosto de falar em mapas. A minha razão para esta preferência é que este modo de falar ilumina o verdadeiro propósito da moralidade nas nossas vidas. O papel que a moralidade cumpre nas vidas humanas não é apenas julgar os outros, mas antes de mais nada, ajudar-nos a orientarmo-nos pelo mundo e pela vida. Saber o que é o Bem e o Mal é ter senso de direção, saber para onde ir e o que evitar com as nossas ações. Assim, o nosso sistema de moralidade é como o nosso mapa da vida. Uma crise existencial é um problema de orientação, é sinal de que algo está errado com o nosso mapa.

Ou temos o mapa bem feito mas não sabemos onde nos encontramos nele, ou o mapa não nos indica qualquer caminho, ou todos os caminhos parecem terríveis, ou seja o que for. Um grande problema, exclusivo à modernidade, é que podemos simplesmente não confiar no mapa. Muitos de nós olham para o mapa e se riem: “Como se o mundo fosse feito de lugares a evitar e tesouros para encontrar! I believe in nussing!” A preocpuação fundamental é que nenhum mapa que nós possamos fazer seja uma representação adequada do mundo em que estamos.

Ao longo desta série temos acompanhado o processo pelo qual, no mundo ocidental, o Bem e todas as fontes morais pelas quais o podemos aceder foram interiorizadas. Se o Bem para Platão era a ordem racional do universo, para nós, depois de Descartes, a racionalidade é um mero instrumento de cálculo da nossa mente (ver capítulo #2). Se o Bem para Aristóteles era a vida de contemplação e ação política, para nós, depois da Reforma Protestante, qualquer vida pode ser boa, desde que a vivamos da maneira certa (ver capítulo #3). E finalmente, se para Lutero esta forma correta de viver é em serviço a Deus, para nós, a partir do século 18, a melhor forma de se viver é em verdade a nós próprios — em serviço à nossa autenticidade enquanto seres humanos únicos e irrepetíveis (ver capítulo #4).

Na era Vitoriana aconteceu uma mudança na nossa relação com o Bem: a dimensão espiritual da vida humana deixou de ser incompreensível sem a existência de Deus. Para além da espiritualidade Cristã, surgem duas grandes “fronteiras” de exploração moral: primeiro, os poderes do agente, tanto de controle e ordem racionais como de expressão e articulação; segundo, na ordem da natureza, na profundidade refletida nos nossos desejos, sentimentos e afinidades. Ambos estes princípios, dos nossos poderes racionais e da ordem providencial, estavam, na sua origem, ligados a Deus.

A sua mutação para uma forma não teística só pôde acontecer quando pareceu às pessoas que as fontes morais só poderiam ser apreciadas ao máximo na ausência de uma divindade. A dignidade do controle e liberdade racionais só pareceu genuína se livre da submissão a Deus. A bondade da natureza e a nossa imersão irrestrita nela pareceu requerer a sua independência de qualquer imposição de um propósito divino. Assim, o mapa moral já se divide em três: eles podem até apontar para os mesmos bens, mas as razões e percursos que cada um deles mostra é diferente.

Nos tempos modernos temos, portanto, três direções: as duas fronteiras de exploração moral e o teísmo. O facto de existirem três direções por si já justificaria a nossa hesitação na fundamentação das nossas fontes morais, mas isto não é tudo. As direções modernas são problemáticas, por serem contestáveis de uma forma que o teísmo não é.

Todos aqueles que abraçarem o teísmo terão nele uma fonte moral perfeitamente adequada, mas a dignidade da razão e a bondade da natureza foram e são colocadas em questão — mesmo que sejam fontes verdadeiras, não é claro a todos que funcionem como fonte moral. Se para o teísmo a pergunta que ameaça é “existe mesmo um Deus?”; para o humanismo moderno a pergunta é “e então?”. A falha de uma fonte moral de se fazer apelativa para nós é um problema que só existe nos mapas modernos.

Não só isso, mas o facto de estas duas fronteiras de exploração terem nascido de mutações do Cristianismo complica a relação entre as três direções: existem investigações teístas sobre a dignidade do homem e sobre a bondade da natureza. Assim, estas direções podem ser rivais, mas também podem-se complementar. Algumas pessoas podem ter completa insensibilidade para uma direção ou outra, mas é possível avançar em todas as direções.

Hoje em dia, nós ainda somos herdeiros da linguagem conceptual que o Iluminismo e o Romantismo nos deram. É por esta razão que os Vitorianos nos são tão próximos. Apesar de pensarmos já os termos superado, os ideias que hoje nos congratulamos por termos avançado são os mesmos que os nossos antepassados do século 19: a igualdade universal, a democracia integralmente aplicada, até mesmo a ideia da história como um progresso, na qual vamos para além dos nossos antepassados, são todas ideias Vitorianas.

Uma das maiores heranças do Iluminismo é o imperativo a reduzir o sofrimento, alinhado com a maior sensibilidade ao mesmo. Este imperativo é uma derivação de dois pilares fundamentais da ética Iluminista: a importância da vida comum e o ideal da benevolência universal.

Outra ideia que vemos tomar forma é a do sujeito livre e autodeterminado, cuja liberdade vem da erosão das concepções de ordem cósmica que podiam defini-lo substancialmente, bem como os seus propósitos enquanto seres racionais. Isto, aliado ao chamado da benevolência universal, levou ao ideal de justiça universal, que culminou na declaração de direitos universais pertencentes a todos os indivíduos, na forma de certas imunidades e benefícios pertencentes a todos os indivíduos com base na sua dignidade enquanto sujeito livre.

É verdade que os sistemas burocráticos das sociedades democráticas são feitos de forma a garantir estes direitos, mas como temos vindo a ver, esta burocracia cria as suas próprias injustiças. Não existe nenhum procedimento estabelecido que atinja uma preocupação universal — que chegue ao padrão moral moderno de resolver todos os problemas do mundo. Se nós levarmos este padrão a sério, a primeira pergunta a responder é a seguinte: o que nos faz continuar? O que nos faz transcender os limites normalmente observados à ação moral humana (nossas simpatias restritas, nossa auto-preocupação compreensível ou a tendência humana de definir a identidade de alguém em oposição a algum adversário ou grupo de fora)?

As diferentes respostas a esta pergunta variam de acordo com as fontes morais usadas. Na França, a ideia de progresso moral era largamente oposta pelos defensores da Igreja, mas nos países Anglo-Saxãos esta visão era uma mistura de ideias Cristãs e Iluministas (aliás, a cruzada anti escravatura foi originada como uma tentativa — bem sucedida — de reviver a fé Cristã). A fé que cresceu como resultado, no entanto, era radicalmente diferente daquilo que houve antes do Iluminismo: o foco prático na benevolência passou a ser uma constante, chegando-se ao ponto de haver aqueles que declarassem inimizade à própria Igreja se esta falhasse em cumprir esta demanda moral.

As duas explicações mais comuns para o declínio da crença religiosa são: ela foi minada pelo progresso da racionalidade científica ou caiu vítima da industrialização e do desenvolvimento da nossa sociedade móvel e tecnológica — ou uma combinação das duas. As duas podem ser combinadas porque partilham de algumas premissas. A tese da industrialização como explicação para a redução de crenças religiosas só seria plausível se a fé fosse não mais que um conjunto de crenças ilusórias cuja natureza errónea era mascarada por um conjunto de práticas, que cairiam assim que as práticas fossem tiradas de jogo. Mas isto é exatamente aquilo que a explicação cientificista assume.

O que dá um ar de credibilidade a estas explicações é o facto de realmente ter ocorrido uma batalha entre a ciência e a teologia na era Vitoriana, batalha esta que a teologia perdeu. Imensos desenvolvimentos foram feitos nesta época nas áreas da geologia (nos revelando a idade enorme do planeta Terra) e da biologia (fornecendo a possibilidade de uma explicação mecanicista do fenómeno da vida).

Em contraponto, a teologia desta época, especialmente a protestante, tinha feito muitos investimentos no argumento do desígnio como prova da existência de Deus. A teoria da evolução por seleção natural de Darwin, no entanto, mostrando como poderia haver desígnio sem um designer, mostrou um furo neste raciocínio. O literalismo bíblico nas igrejas Protestantes e a significância crucial dos milagres de Cristo como prova das suas credenciais apenas somaram à vulnerabilidade da fé Cristã, já que muitos descobrimentos científicos pareciam ser diretamente opostos às doutrinas da Igreja.

Mas apenas isto não chega para explicar a certeza que muitos tinham da necessidade de conflito entre a ciência moderna e a religião — que era mais forte entre os não crentes, ainda por cima. O que os permitia esta confiança, pelo menos intelectualmente, é uma atitude normalmente chamada cientismo. O cientismo é a crença de que os métodos e procedimentos da ciência natural são suficientes para estabelecer todas as verdades que precisamos de acreditar. E o que os fez acreditar nisso? Razões conclusivas não foram, porque elas não existem. Nada nos demonstra que todas as questões em que precisamos de formular alguma crença possam ser resolvidas desta forma. O cientismo requer um salto de fé.

O que realmente empoderava o cientismo era a sua visão ética: a ideia de que não devemos acreditar em nada que não seja suportado por evidências suficientes. Esta ideia veio da junção do ideal da liberdade da razão auto responsável com o heroísmo da descrença: uma satisfação espiritual em ter confrontado a verdade, independentemente o quão desoladora. É uma ética deste tipo que suportou o cientismo, fornecendo no método científico princípios básicos a partir dos quais podemos delinear os critérios para distinguir daquilo que temos boa razão para acreditar, as meras fábulas que a nossa mente tende a aceitar.

O resultado é uma visão dividida da natureza. Por um lado, temos um vasto universo que a descoberta científica releva continuamente, vasto e até desconcertante, maior do que a nossa imaginação pode conceber, tanto no gigantesco como no minúsculo; alheio e indiferente a nós, apesar de cheio de beleza e sendo capaz de inspirar veneração. Por outro lado, temos a natureza que sentimos dentro de nós, com a qual podemos estar fora de sintonia apesar de aspirarmos a harmonia. A primeira é a visão Iluminista da natureza, a segunda é a visão Romântica. Com efeito, sem Deus, o nosso mapa do mundo em que vivemos é, inevitavelmente, dividido.

Depois do século 19, o Romantismo sofreu transformações em resposta a esta dessacralização da natureza. A primeira delas foi o “realismo” ou “naturalismo”. Esta é uma corrente de artistas que abraçou o naturalismo Iluminista e rejeitou a noção de uma realidade para além das coisas na sua humilde natureza. A continuidade com o Romantismo vem da ideia naturalista de que a nossa percepção normal das coisas é constantemente deturpada por modos consoladores e ilusórios de projetar significância à realidade, de forma que vê-las como o naturalismo as apresenta exige grande coragem e lucidez. Assim, O Madame Bovary de Flaubert, apesar de não colocar dignidade na realidade que representa, ainda nos pretende revelar aquilo por trás do que vemos: a verdadeira mediocridade e banalidade das coisas.

A segunda transformação do naturalismo encontramos em Baudelaire. O que ele nega é a natureza, não o reino espiritual — este ele afirma com entusiasmo. O francês via a natureza como algo interessante mas que nos puxa para baixo, uma fonte de melancolia e arrependimento em vez de fonte moral. Na sua rejeição da natureza, Baudelaire é uma oposição ao Romantismo, mas no seu desprezo da sociedade comercial e em encontrar na arte o antídoto espiritual, ele é uma continuação deste movimento.

Para Baudelaire a arte preenche o papel da religião, tanto no sentido de nos permitir ver o mundo de beleza espiritual através do que encontramos dele na natureza (um dos trabalhos do artista é mostrar isso), como no sentido em que devemos estar também constantemente bêbados, intoxicados pelo mal. Um outro tipo de epifania para além da causada pela beleza sobrenatural é a epifania satânica: devemos nos enterrar no mal com o mesmo objetivo que procuramos o belo — evitar a banalidade e a morte, o tempo inerte e a feiura medíocre. O propósito da arte é corrigir a natureza.

Uma terceira continuação do Romantismo é a visão da natureza na sua energia amoral e selvagem. Esta é encontrada na filosofia do misantropo mais influente do século 19, o grande “pessimista” Schopenhauer. Para ele, tudo o que há são manifestações da vontade infinita da natureza, mas esta vontade não é a fonte do bem. Pelo contrário, ela é apenas um impulso cego, selvagem e nunca satisfeito, impelindo tudo o que há numa busca contínua pelo inatingível. A vontade se esforça apenas para perpetuar a si mesma. O que pensamos ser os nossos desejos são, na verdade, apenas estratégias inconscientes da natureza para realizar esse fim.

Existe um outro motivo possível por trás do pessimismo Schopenhaueriano. O alinhamento do desejo e da razão que os Românticos descrevem pode ser algo difícil de reconhecermos na nossa vida pessoal. O que muitos fizeram face a esta realização foi ver o homem como depravado e em necessidade de uma transformação da sua vontade. A opção de Schopenhauer livra o indivíduo deste fardo e culpa: simplesmente não há harmonia nenhuma entre homem e natureza, desejo e razão. Assim, a nossa salvação não vem de uma reconciliação com alguma ordem maior, mas do abandono da vontade e da nossa identidade — que são apenas forças naturais cegas de qualquer forma.

A transfiguração a que podemos aceder não é a de liberação total do nirvana budista, mas a de acalmar a vontade em nós através da contemplação artística — isto porque Schopenhauer tira de Kant a doutrina de que apenas a contemplação estética é desinteressada, tornando-a uma fuga às pressões da vontade. Para ele, a noção da transfiguração através da arte era uma forma de escapar à realidade, que é fundamentalmente má — ao contrário do que a nossa cultura Cristã insiste em sustentar. É isto que permitiu um jovem Nietzsche mais tarde falar da arte como “justificando” a realidade, de ver a arte como o propósito final da vida.

Todas estas três posições, de alguma forma, colocam em dúvida a bondade da natureza — pintam um mapa do mundo como fundamentalmente mau, tendo alguma forma de negação do mundo como a única direção adequada. Mas a ideia de que a natureza é boa é a base das nossas éticas e políticas seculares mais bem difundidas: sem ela, todos os bens relacionados com a benevolência, o valor da felicidade e vida humanas, perdem o seu fundamento.

Aqueles entre nós que ainda estão comprometidos com estes ideais (e isto ainda compõe a vasta maioria das pessoas do Ocidente) se encontram perante uma crise de afirmação. Precisamos de arranjar maneira de afirmar a natureza, isto é, o nosso mundo, como bom e digno do nosso esforço para o tornar melhor. Para além das opções de voltar a alguma crença anterior, como a fé Cristã ou alguma doutrina Iluminista sobre a razão e a liberdade, existe agora uma nova opção para lidar com este problema. Podemos ver a necessidade de afirmação como algo que temos de resolver através de uma transfiguração da nossa visão, em vez do reconhecimento de alguma ordem objetiva de bondade.

A bondade do mundo pode ser vista como dependente pelo menos em parte da nossa capacidade de ver que ele é bom e mostrá-lo. Para além da influência Platônica que nos leva a ver o mundo como bom pela racionalidade da sua ordem, temos também a influência Cristã: logo no Livro do Gênesis, temos a ideia de que a bondade da criação de Deus não é independente de Deus vê-la como boa. O facto de Deus ver que ela é boa e amá-la pode ser concebido, não como uma resposta à sua bondade, mas antes precisamente o que faz com que ela seja boa. Isto pode significar uma autoatribuição de poder resolutamente ateísta, como acontece com Nietzsche, mas também pode vir de uma perspectiva Cristã, como acontece em Dostoievski.

Em Dostoievski, uma das ideias centrais é ligada à maneira como nos abrimos ou fechamos à graça divina. Apesar de o pecado derradeiro ser o fechar a alma a Deus, as razões para fazê-lo podem ser muito boas: uma vez em pecado, entra-se num círculo vicioso muito difícil de escapar. Nós fechamo-nos por desprezo por nós próprios e pelo mundo — e o quão mais sensíveis e moralmente capazes nós formos, mais fortemente seremos tentados por este desprezo.

Ivan Karamazov, um dos personagens mais moralmente sensíveis de Dostoievski, recusa-se a ir ao paraíso por sentir que a felicidade eterna da humanidade toda não vale as lágrimas de uma criança inocente. Mas esta posição de rejeição só pode levar a atos de destruição e ódio: o desprezo pelo mundo e por si próprio alimenta uma projeção de males ao mundo externo, criando uma polarização entre sujeito e mundo que parece justificar ou até mesmo chamar por terror, violência e destruição contra o mundo. Rejeitando a graça, só podemos causar destruição: os mais nobres causam-na apenas a si próprios, os menos nobres causam aos outros.

Mas Dostoievski sustenta que este ódio é, em última instância, fruto de orgulho: de uma recusa em vermo-nos como parte deste mal. A transformação só é possível aceitando a responsabilidade pelo mal do mundo e amando-o, vendo-o como bom apesar do mal que existe. Este amor, face a todo o mal do mundo, pode ser visto como um milagre, que só é possível se aceitarmos ser parte dele e aceitarmos sermos amados pelos outros para os podermos amar também. No fundo, o que Dostoievski nega, acima de tudo, é que os homens possam afirmar a sua dignidade em separação do mundo.

Em Nietzsche a direção tomada é oposta. Apesar da oposição ao cristianismo, da aspiração de afirmar toda a realidade, de dizer que “sim” a tudo, ele mantém-se na cultura Judaico-Cristã — e seria incompreensível fora dela. Nietzsche herda o mundo governado por forças cegas e não espirituais de Schopenhauer e vê os humanos como uma objetificação ainda mais intensa desta vontade para o poder. A afirmação da realidade, no entanto, só é possível com uma vitória sobre si próprio, uma afirmação do mundo enquanto força bruta.

Contra tudo isso, Nietzsche opõe o seu mito do eterno retorno: não haverá resolução, ascensão, nenhuma compensação pelo sofrimento, nenhuma reconciliação final, nenhuma saída. Esta é a visão que separa os meros humanos dos super-homens. Só estes últimos podem suportar o vazio, olhá-lo nos olhos e ainda dizer que ‘sim’ a tudo. A moralidade nos levou à ideia de algo infinitamente digno de afirmação e amor, mas este algo não eramos nós, mas a negação do nosso ser — que é a nossa vontade de poder. Assim, a solução é negar a moralidade que procura negar a nossa força e perceber de uma vez por todas que o poder de afirmação está em nós e que não faz sentido virá-lo contra nós próprios.

Nestas duas posições, é a nossa visão do mapa e a nossa capacidade de afirmá-lo que o tornam legítimos. Isto resolve o problema da crise de afirmação, mas parece criar outros. Para além do óbvio problema da negação da benevolência em Nietzsche, temos de considerar também que se a legitimidade do nosso mapa depende dos nossos poderes de afirmação, então parece possível que qualquer mapa seja igualmente legítimo, desde que o afirmemos. Se para afirmarmos o mundo temos de poder afirmar qualquer visão possível do mundo, temos um problema sério: sem um critério para diferenciar bons mapas de maus mapas, como saber que mapa escolher? A própria noção de verdade perde completamente o sentido…

Até agora, todos os capítulos desta série têm acabado em tensões, paradoxos, problemas sem solução. No próximo e último capítulo, vamos ver uma resposta não definitiva e decididamente anti climática a todos estes problemas.

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Written by Raphael Mees

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