Éticas Seculares #3 — A boa vida é a vida bem vivida!
(Baseado em Charles Taylor, “Sources of The Self”)
Qual é a melhor maneira de viver a vida? Hoje em dia não é tão fácil responder a esta pergunta, mas nem sempre foi assim. Em culturas heróicas como a Grécia Homérica, o melhor tipo de vida era a vida de um soldado. Qualquer um responderia que a melhor maneira de viver a vida era viver de forma que as nossas histórias de glória fossem cantadas por poetas anos depois da nossa morte. Durante a Idade Média, pelo menos no mundo Ocidental Cristão, era consenso geral que a melhor vida era a de vocação monástica. Monges viviam mais próximos de Deus e tinham acesso privilegiado à fonte de todo o Bem.
A uma dada altura da nossa história, passamos a ser livres de padrões do Bem exteriores ao indivíduo. Para nós, até certo ponto, a melhor maneira de viver a vida é viver segundo o que nós escolhemos. De forma semelhante com o que aconteceu com a racionalidade no capítulo #2, a boa vida passou por um processo de internalização. Para entendermos como a nossa vontade e o nosso comprometimento com algum ideal passaram a ser a maneira certa de viver, começamos outra vez na Grécia Clássica.
Tanto para Platão como para Aristóteles, a “vida comum” é pouco mais que um suporte para a “boa vida”. Praticamos atividades ordinárias como trabalhos manuais e a gestão da vida familiar, as atividades de produção e reprodução, apenas para que sejam mantidas as condições para podermos perseguir as atividades mais nobres da vida humana: a contemplação e a ação política. Para estes dois, não é o heroísmo Homérico, mas a vida política e racional que é o verdadeiro ideal humano.
Para Platão, as almas são eternas e vivem no mundo das Ideias antes de descerem ao nosso mundo e entrarem num corpo. Assim, para obtermos conhecimento sobre o Bem, basta relembrarmos as visões eternas que as nossas almas já têm. Santo Agostinho tem uma teoria sobre o autoconhecimento bastante parecida. Por sermos obras de Deus, possuímos em nós um entendimento implícito dos princípios da razão, mas precisamos de um árduo trabalho para tornar este entendimento explícito. Nós não experienciamos a verdade antes de nascer, mas nascemos com ela em nós: eis a génese da teoria das ideias inatas.
Para Agostinho, é através do autoconhecimento que obtemos a nossa vontade na sua expressão máxima: é apenas com o conhecimento de si própria que a mente pode se amar. Mas ao contrário de Platão, Agostinho não vê a vontade como mero conhecimento: podemos escolher o mal mesmo conhecendo o bem.
Isto é resultado da influência estóica no pensamento Cristão: a prohairesis, a virtude estóica que corresponde à capacidade de conferir ou negar consentimento, de escolher, é extremamente valorizada. O pensamento Cristão aderiu a esta corrente estóica e a estendeu: uma vez que podemos nos voltar voluntariamente ao mal, a perfeição moral requer uma adesão pessoal e interna ao bem, um comprometimento completo da vontade. Assim, a boa vida já não é simplesmente a capacidade de conhecer o universo e pôr-se em harmonia com ele, mas também de amá-lo. A atitude da nossa vontade perante o mundo passa a ser um componente crucial do que é uma boa vida.
Para pensadores pré-modernos, o conhecimento acontece quando a ação das Formas em formar o mundo coincide com a sua ação em formar o nosso intelecto. As Formas das quais os objetos participam são um nível de realidade mais fundamental e mais real que os objetos particulares. A verdade ou o valor de um objeto emanam do próprio objeto, da sua natureza (enquanto participando de uma Forma). Para os modernos, contudo, esta relação é muito diferente: mesmo que o valor e a verdade sejam objetivos, eles só o poderão ser na medida em que presentes em alguma mente (seja a nossa ou a de Deus).
Hoje, as fronteiras entre o físico e o psíquico estão muito bem desenhadas. É justamente esta divisão que tornou impossível concebermos a possibilidade de magia ou forças ocultas: que certas poções ou atos de fala possuam neles mesmos alguma causalidade (causar amor ou curar uma doença) implica uma abertura nesta fronteira, que o mundo desencantado do mecanicismo não permite (mais sobre o surgimento do mecanicismo no capítulo #2).
Mas esta mudança não aconteceu só por causa da ciência. Antes disso, ela aconteceu por causa de uma profunda mudança na nossa espiritualidade. Com a Reforma Protestante, práticas mágicas eram vistas com muita suspeita, já que um dos principais princípios da Reforma é que o poder divino não está nas mãos humanas. Talvez o maior ponto de Lutero na sua divergência com o Catolicismo foi a rejeição da mediação: caiu a ideia de que alguns Cristãos mais dedicados, que seguiam a “vocação monástica”, tinham a possibilidade de conferir salvação a outros menos dedicados. O comprometimento pessoal tem de ser total para todos ou não vale de nada.
Para Lutero, a salvação está apenas nas mãos de Deus: os seres humanos são completamente incapazes de fazer qualquer coisa boa por si próprios depois da Queda do Paraíso, dependendo da graça divina para se salvar. A ideia Católica do sacramento do altar, por exemplo, segundo a qual o poder para realizar uma comunhão entre Deus e os homens foi dado à Igreja, passa a ser vista como uma abominação. Cada homem está sozinho na sua relação com Deus e o seu destino é decidido separadamente.
Assim, Lutero realiza uma continuação do processo de internalização que Agostinho iniciou. Na cultura Homérica dependíamos completamente da nossa comunidade para atingir a boa vida. Em Platão dependemos da Ordem cósmica e da comunidade. Em Agostinho dependemos de Deus mas podemos nos apoiar na comunidade. Em Lutero a ordem cósmica perdeu sentido e a comunidade não existe: cada um sabe da sua vontade e Deus não quer saber quem são os nossos amigos.
Esta nova concepção do indivíduo também influenciou as novas teorias políticas contratualistas que surgiram a partir do século 17. Já existiam teorias contratualistas desde o Estoicismo, e também nas doutrinas medievais sobre os direitos. A grande diferença é que as doutrinas contratualistas anteriores justificavam uma forma de governo a partir de um contrato. No século 17 o que tem de ser justificado, antes de podermos falar de formas de governo, é a legitimidade de qualquer governo. As pessoas são, essencialmente, átomos políticos. A condição de estar sob autoridade, assim como toda a ordem do universo, é algo que agora tem de ser criado.
O que torna uma ordem política legítima é o comprometimento individual (a sombra de Agostinho já é fácil de notar). O Calvinismo, especialmente o Puritano, dava muita ênfase a este aspeto: a divisão fundamental era entre almas salvas e condenadas por Deus, e esta divisão transcendia as comunidades herdadas contingentemente. Os comprometidos com Deus devem se juntar entre si, já que a família, as alianças e a vizinhança podem nos falhar, mas a graça divina não. As comunidades Puritanas eram, portanto, fundadas no comprometimento pessoal e voluntário dos seus membros a uma causa comum — servir a Deus.
Esta transformação deu uma nova luz espiritual à vida de todos os dias. Uma vez que não existe mediação divina no mundo material, nenhuma parte do mundo é mais sagrada que qualquer outra. O que distingue uma vida exaltada, portanto, não é a prática de uma atividade exaltada, mas sim o espírito em que uma pessoa vive o que viver, seja a existência mais mundana possível.
As coisas no mundo foram criadas por Deus para o uso humano, mas o propósito final é a adoração a Deus. O pecado, portanto, vem do homem passar a amar estas coisas por elas mesmas, que é uma quebra da ordem correta entre o Criador e as suas criaturas. Viver corretamente exige evitar dois erros: o erro da renúncia deste mundo por parte dos monges e o erro de se absorver nelas em detrimento de Deus.
Servir a Deus através do trabalho e do casamento significa fazê-los com grande empenho e amor, mas este amor não pode ser dedicado somente a estas coisas, mas sim a Deus através delas. É com a Reforma que surgem os dois maiores pilares da vida moderna: a profissão e o casamento. Os casamentos devem ser feitos por amor e que a vida familiar merece o nosso maior empenho, pois reproduzir a espécie é um propósito dado a nós por Deus.
Existe uma grande analogia entre a espiritualidade Protestante e a visão científica proposta por Francis Bacon. Com o seu método experimental, ele desafiou a noção Aristotélica altamente difundida de que a “boa vida” engloba a atividade teórica e a participação como um cidadão na política. Para Aristóteles e a tradição que o seguiu, o filósofo não deve se preocupar com a mera manipulação das coisas, já que a atividade política é muito mais importante que a atividade comercial. Em muitas sociedades, o próprio ato de envolvimento no comércio era visto como uma derrogação do estatuto aristocrático.
A transição em ordem é a em que estas atividades especiais caem sob grandes críticas e a vida boa é vista em termos de atividades comuns. O objetivo passa a ser aliviar a condição do homem: a ciência não é uma atividade superior à qual as outras devem ser subservientes, mas antes uma que beneficia a vida comum. Isto é uma transvaloração de valores: o que antes era visto como inferior é agora o padrão, e o que era visto como superior é agora tido por presunção e vaidade. O pobre artífice contribui mais ao avanço da ciência que o filósofo abastado.
Agora entendemos as ideias de Locke sobre a importância de produzir benefícios à comunidade com o nosso trabalho. Esta ideia das vocações profissionais como chamados divinos (Note-se que vocação vem de vocatio, latim para “chamado” — antes da Reforma a única vocação que existia era a monástica: a vida espiritual a que Deus nos chamava para participar) torna possível a teoria que surgiu no Iluminismo da “harmonia de interesses”, segundo a qual é possível conciliar o interesse próprio e a beneficência. Estamos todos a servir a Deus a perseguir o nosso chamado com o nosso trabalho — e como todos os caminhos levam a Deus, e o que é bom para Deus é bom para todos, todos os caminhos são bons para todos.
Mas em Locke a afirmação da vida comum (em detrimento de uma “vida superior”) vai ainda mais longe. Se para Lutero a salvação depois da Queda estava apenas nas mãos de Deus, para Locke Deus nos ergue através do nosso amor-próprio: o facto de buscarmos prazer e evitarmos sofrimento não é uma falha, mas uma característica inalterável da nossa constituição, que pode tomar formas mais destrutivas ou mais racionais. Com isto, o papel da graça divina de nos tirar da nossa condição caída desaparece — nós temos em nós o que é preciso, basta escolhermos o bom caminho.
A visão da graça que foi rejeitada por Locke é a sustentada por Lutero, de acordo com a qual a vontade humana é tão depravada depois da Queda que precisamos da graça para poder sequer fazer uma boa tentativa de compreender o bem natural, quando mais ultrapassá-lo. Mas existe uma outra visão da graça divina, defendida por Tomás de Aquino e Erasmo depois dele, em que Deus nos chama a ter algo mais que apenas o bem natural, uma vida de santidade. Nesta visão, o bem natural é afirmado como bem — para Lutero a graça divina só nos pode salvar se a nossa natureza for completamente má.
Mesmo depois da Reforma, no entanto, a tradição Erasmiana ainda lutava, por exemplo com os Platonistas de Cambridge, Henry More, Ralph Cudworth, Benjamin Whichcote e John Smith; que se opunham a uma teologia de leis externas e ao mecanicismo, preservando uma visão do mistério de Deus. Para eles, a vontade divina é interna à Natureza (ao contrário do que achavam os mecanicistas, que viam a natureza como desprovida de ordem ou vontade): mais importante do que atribuir a Deus uma vontade “arbitrária” em nome da sua Soberania e poder é exaltar a sua justiça e bondade. O amor, portanto, tinha um papel central nesta visão: tanto o amor ascendente do menor para o maior como o descendente do maior para o mais fraco — este último sendo altamente semelhante à concepção Cristã de ágape.
Da junção da visão do indivíduo como sujeito racional e autónomo, da marginalização da graça divina e de uma grande influência Estóica, emerge o Conde Shaftesbury. Para ele, o maior bem para um ser humano é amar o mundo como um todo, sem se deixar distrair pelos seus próprios interesses. A mente humana particular deve seguir a sua tendência natural e colocar-se em harmonia com a mente divina e universal — para Shaftesbury, com efeito, Deus não é o Deus da revelação de Abraão, mas antes um Deus estóico, o pensador e criador da ordem cosmológica.
Nisto vemos uma grande continuidade com Descartes e Locke, com os seus ideais da razão imparcial (ver capítulo #2). Ao contrário de Platão e dos Estóicos, que são as suas maiores inspirações, para Shaftesbury o nosso amor pelo mundo não pode ser simplesmente uma consequência da nossa racionalidade. Shaftesbury aceita a visão de Locke do sujeito como organismo material. Para ele, assim como para Locke, o bem e o mal são o prazer e o sofrimento. A razão pela qual nós amamos a ordem das coisas, portanto, tem de estar relacionada com algo interior ao sujeito: nós precisamos de afeições, sentimentos morais, predisposições.
Isto também influencia a hierarquia das virtudes. Para um escritor estóico, nós devemos consolar sem sermos movidos por pena, tendo virtudes como justiça e temperança como as mais importantes. Mas com o Cristianismo, surge um novo ideal moral, cujo mais alto expoente é o de um homem que deu a sua vida pelo mundo. Ainda mais, com a afirmação da vida comum e da nossa natureza puramente material, o caráter prático e de direção ao bem geral do nosso trabalho ganha ainda maior ênfase, de forma que a maior virtude passa a ser a benevolência. Assim, a benevolência é a virtude que o mundo mecânico da razão distanciada põe como valor máximo e é a virtude que a própria razão distanciada, se levada ao extremo, como vimos no capítulo #2, acaba por negar.
A bondade de Deus passa a consistir na sua capacidade de trazer a nossa felicidade, mas sem uma referência de volta à Ele. Se antes a nossa felicidade era promovida para sermos capazes de servir melhor a Deus, agora a felicidade humana é definida apenas em termos materiais: somos felizes se alcançamos o prazer que desejamos por natureza. Para Francis Hutcheson, por exemplo, a alma precisa de Deus para ser boa, mas esta bondade é uma determinação à bondade universal, a bondade divina, que consiste em Deus promover justamente este fim — a felicidade humana. Isto pareceu a outras pessoas da época nada mais que presunção pura, já que nós estamos aqui para Deus, e não o contrário.
Em todas as tradições religiosas em que existe um deus ou deuses existe também a ideia de que os propósitos de deus são diferentes dos nossos: a sua amizade ou boa disposição não pode ser tomada por garantida e tinha de ser propiciada ou merecida. Com Platão é que surge uma noção mais unitária e refinada da Divindade: Deus é apenas um, e é identificado com a ordem ou harmonia do cosmos — algo muito acima da família libidinosa e em constante guerra de que Homero falava. Nisso, os propósitos da humanidade também são elevados: temos de reconhecer esta ordem enquanto seres racionais, podendo chegar a amar uma e a mesma coisa que Deus — a ordem racional.
Mesmo na religião Hebraica, em que Deus, apesar de completamente superior ao homem, chama Israel para servi-lo, elege o seu povo e promove os seus propósitos, o que Deus pede em troca é uma entrega total — refletida na história em que Deus comanda a Abraão que mate o seu primogénito Isaque. Não só isso, mas Deus eleva o povo eleito a um padrão moral mais alto, exigindo dedicação e caridade. A grande diferença que verificamos no Deísmo é que, em vez de promover a nossa felicidade a chamar o seu povo para um nível mais elevado, Deus o faz promovendo o interesse comum e a felicidade mútua das suas criaturas racionais. Com efeito, para Matthew Tindal é precisamente e somente por esta razão que amamos a Deus — se Ele não promovesse o nosso bem, como criaturas racionais que somos, não o poderíamos amar.
Assim não só os milagres são desnecessários (já que a ordem divina não precisa de remendos), mas também o lado histórico das religiões perde o sentido. A ideia de que alguns eventos cruciais (o monte Sinais, a Encarnação ou a dádiva do Corão) são erupções divinas na vida humana, como que vindos de uma outra dimensão, que devem ser preservados através de tradição, perde sentido. As grandes verdades religiosas têm de ser universais, pelo que se torna vergonhoso que as religiões tenham certos momentos que separam um povo de outro, momentos de revelação que estão para além da compreensão racional. A ênfase na divindade como ordem racionalmente inteligível torna a teologia natural a única boa teologia.
Assim, o naturalismo moderno fez acontecer uma viragem no nosso entendimento do mundo. A religião e os próprios propósitos divinos passaram a ser entendidos por referência ao mundo natural — mais especificamente, a nós humanos, habitantes do mundo material e nada mais. Assim, a vida boa já não é servir a Deus através de trabalho e reprodução no mundo material, mas sim aproveitar o mundo natural que ele nos deu. Se o mundo natural era bom por fazer parte da ordem divina, agora a ordem divina é boa se manifestar essa bondade no mundo material. Já não é Deus, mas o indivíduo, com os seus sentidos de prazer e sofrimento, o juiz final do que é bom ou mau.
Esta nova concepção da natureza mudou também a ordem social e o que significou “viver de acordo com a natureza”. Agora entender a natureza significa, uma vez mais, entender os propósitos de Deus. A razão e o amor-próprio, sendo os dois princípios fundamentais que guiam a nossa natureza, não devem estar em guerra um com o outro. A razão instrumental passa a ser vista como um guia para as paixões, que por sua vez nos dão força motivacional. Factos não motivam, emoções sim.
Por trás disto temos uma grande mudança na nossa psicologia moral. Na Antiguidade, as paixões eram entendidas primordialmente pela sua importância para a vida moral: elas eram vistas como apreciações implícitas da bondade ou maldade de alguma situação. Em Descartes, ocorre a primeira mudança: as paixões são entendidas na sua função na relação entre alma e corpo, como uma “natureza irracional”, um obstáculo que tem de ser subjugado aos decretos da razão fria e distante, de forma a cumprir a função que lhe for atribuída. No século dezoito os decretos já não vem da razão fria e distante, mas sim das próprias paixões, que passam a ser normativas. Os sentimentos passam a ser a pedra de toque do bem moral. Não porque sentir que algo é bom faz dele bom, mas porque o sentimento é a nossa fonte de acesso ao desígnio das coisas.
Com David Hume temos ainda mais um desenvolvimento: o escocês herda tanto o distanciamento racional de Locke como a teoria dos sentimentos morais de Hutcheson. Para ele, o mundo não tem significado em si e não há ordem natural. Mesmo assim, em vez de controlar a natureza como um domínio neutro, como Bacon, Descartes e Locke procuravam, o objetivo de Hume pode ser visto como o de auto-aceitação. A nossa condição humana nos obriga a atribuir significância a algumas coisas. A busca não é por distância mas aproximação: entrar em contacto com quem realmente somos.
O Naturalismo Iluminista e a fé numa ordem natural perfeitamente racional já estavam desgastados. Rousseau é uma influência crucial para todas as faixas de pensamento que procuram opor-se a este naturalismo. O francês começou como um amigo dos Enciclopedistas, mas acabou seu inimigo: para Rousseau a noção de depravação era essencial em qualquer visão moral — o mal não é apenas fruto de ignorância, então não é apenas o conhecimento que o vai eliminar… para isso uma transformação da vontade é necessária.
Rousseau retém influências Jansenistas e Agostinianas, pensando que, ao contrário do que Descartes afirmou, nós não sabemos a real profundidade dos nossos corações e mentes (não somos, portanto, auto-transparentes). Temos tendências naturais para o orgulho, que mascara as nossas verdadeiras intenções de nós mesmos: somos, como Pascal colocou, monstros incompreensíveis, cheios de contradições.
Aqui a ideia de “trabalhar em nós próprios” até ficarmos bons, que nasceu nos Neo-Estóicos e em Descartes e se estica até hoje na cultura de self-help, sofre um grande golpe. Isso porque tornarmo-nos bons deixa de ser visto como um “problema técnico”, uma questão de análise imparcial dos pontos onde estamos em falta e trabalho sistemático para correção de erros. O problema que nos impede de sermos bons é um problema de atitude: não conseguimos analisar os nossos problemas de forma imparcial porque a nossa vontade tende para a corrupção.
Para Rousseau, a fonte de graça que nos salva de nós próprios já não é Deus, mas a voz da Natureza, que é fundamentalmente boa: o que nos deprava é o distanciamento dela e do nosso estado natural. Nós perdemos a inocência natural por não dependermos mais apenas de nós próprios e destes impulsos, mas também dos outros e daquilo que eles pensam de nós: o que nos separa da natureza é uma densa teia de opiniões traçada entre nós e a sociedade.
Rousseau chega no seu mais próximo dos Estóicos na sua doutrina de ascetismo e na rejeição de desejos e necessidades excessivas: um homem está no seu estado mais livre quando aceita o seu lugar na natureza e se limita a ele. Rousseau também prega por uma vida de obediência cívica, alertando aos perigos de corrupção da riqueza. O que ele procura com a sua doutrina de humanismo cívico é a afirmação da vida comum. Para isso, é importante não dar importância a nenhum processo deliberativo que separe a vida política da perseguição dos meios de sobrevivência: a política não é uma atividade superior e a deliberação política não importa tanto quanto a unidade social. Na melhor situação possível, haverão poucas leis e o bem comum será evidente por todo o lado.
A distinção entre virtude e vício é alinhada com a independência ou dependência dos outros. A moralidade já não tem a ver com as consequências das ações (e da felicidade ou sofrimento que elas provocam), mas sim com as suas intenções. A vontade faz um retorno à moralidade, que tinha sido dominada pelo prazer. A boa vida é agora uma vida vivida em concordância com os nossos impulsos naturais, por oposição ao que a sociedade espera de nós. Esta oposição entre homem e sociedade é a semente da cultura moderna de autenticidade, que será o assunto do próximo capítulo.
É de Rousseau que Kant tira a sua noção de autonomia: a dimensão moral só existe quando falamos de intenções, boas ou más. A moralidade em Kant depende da conformidade das ações com a lei moral. Agir de acordo com esta lei é o mesmo que agir de forma livre porque é agindo de acordo com ela que agimos segundo a nossa verdadeira natureza enquanto seres racionais.
Para Rousseau somos livres quando agimos de acordo com a natureza e contra o que a sociedade espera de nós. Kant, usando de outras influências, pensa que somos livres quando agimos contra a natureza e de acordo com a nossa racionalidade. A natureza, para Kant, tenta impor as suas leis a nós, nos fazendo procurar o prazer e nada mais. Mas a nossa verdadeira natureza é de seres racionais, que conseguem superar esta natureza e agir de acordo com as nossas próprias leis. Para Kant o universo é mecânico e nada no mundo material tem qualquer propósito. A natureza racional é a única coisa que é um fim em si mesma, transcendendo a natureza mecânica e podendo usá-la como meios para os seus fins.
Se voltarmos à pergunta do início, “Qual é a melhor maneira de viver a vida?”, vemos que algumas coisas mudaram. Seja para Kant, seja para Rousseau, encontramos a resposta dentro de nós e não em qualquer coisa que nos seja externa. O indivíduo é o árbitro último do que é bom ou mal, seja pela sua natureza material ou pela sua racionalidade. Nenhuma comunidade é capaz de impor a alguém uma maneira de viver como melhor que qualquer outra. Mas ainda existe uma grande diferença entre esta posição e a posição que temos hoje em dia. Tanto para Rousseau como para Kant, a verdade moral ainda é universal e igual para todos.
É apenas com o Romantismo e o Expressivismo que vem com ele que chegaremos à ideia tão comum hoje de que cada um tem a sua verdade, que cada um sabe o que é bom para si (de modo que o que é bom para mim pode ser péssimo para outros). Este será o assunto do próximo capítulo, o nascimento do ideal de autenticidade.