O que é a ciência?

Raphael Mees
14 min readDec 25, 2021

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Desde criança, por alguma razão, sempre achei excelente quando alguém (normalmente um adulto) me dizia a origem etimológica de uma palavra, especialmente quando essa origem era comum a outros termos. Estas ligações, que me permitiam ver conexões entre conceitos que eu antes nunca tinha visto, foram talvez os primeiros “orgasmos intelectuais” que já tive — é difícil descrever o prazer que se sente quando uma nova ideia aparece e ilumina, como que num turbilhão, áreas separadas da mente, estimulando pensamentos a um ritmo realmente raro de se experienciar.

Eu não quero ser amigo de qualquer pessoa que negue que é super épico saber que, por exemplo, a palavra “religião” vem do termo latim religio, uma conjugação de religare, que significa reatar ou reunir. As relações que podemos estabelecer com isto são ilimitadas: temos a ideia de Platão de que o conhecimento que temos das Formas Eternas é apenas um refrescar da memória, um relembrar o que tínhamos esquecido; ou o facto de nos reunirmos em rituais religiosos; ou o facto de a própria religião ser uma maneira de ver o mundo todo como uma coisa só, reunindo os homens como todos iguais e parte da mesma substância. MUITO interessante.

Outro exemplo interessante é o da palavra “ciência”, que deriva do latim scientia, que significa conhecimento (sistemático), e deriva do verbo scire, que significa “saber”. É por isso que “estar ciente” é ter conhecimento. Ser “consciente”, por exemplo, significa, literalmente, ser aquele cum scientia, “com o conhecimento”.

Pensando então apenas no significado estrito da palavra, a ciência é simplesmente conhecimento. Mas algo só é conhecimento se for confiável, se for mais do que uma mera hipótese. É por isso que o conhecimento científico tem de ser organizado e sistemático — é por isso que tem de ser racional. Para que este saber seja considerado racional, temos de fornecer razões para sustentá-lo (racional é aquilo sustentado por razões, afinal de contas). Estas razões normalmente vem na forma de princípios gerais, que depois sustentam uma série de conhecimentos, que são então organizados de forma hierárquica (formando então um sistema).

É por isso que o conhecimento científico se opõe ao “conhecimento vulgar”, à mera doxa (opinião), ao dogma e à superstição. Para que possamos dizer que possuímos scientia, temos de fornecer razões para sustentar o que dizemos: o nosso entendimento do mundo tem de ser sistemático.

A ciência naturalizada

É bastante curioso, então, que hoje em dia, quando falamos de “ciência”, normalmente queremos dizer algo muito mais específico do que meramente “conhecimento sistemático e racional". Usamos o termo quase que num sentido homónico. Da mesma forma que usamos “bebida” para falar de “bebidas alcoólicas” ou “intrumentos” para falar de “instrumentos musicais”, usamos “ciência” para falar de “ciências naturais” ou “a instituição e comunidade científica”.

Quando alguém nos diz que “a ciência diz que tudo é feito de átomos”, o que querem dizer é que a comunidade científica corrobora com esta teoria. Quando alguém nos diz que “não é possível obter conhecimento científico sobre a existência de Deus”, o que querem dizer é que a ciência natural não fala sobre este assunto (já que só estuda o mundo natural, e não o sobrenatural ou metafísico, que é para onde nos voltaríamos para estudar sobre a existência de Deus).

Esta conflação de “ciência” com “ciência natural” é um fenómeno interessante de ser estudado em maior profundidade porque nos diz bastante sobre a mentalidade do mundo em que vivemos. Ela tem tanto uma origem histórica como uma base de pressuposições filosóficas. Foi com o nascimento da “Ciência Moderna”, com a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, que se desenvolveu o “método experimental”, também conhecido como “método científico”. Este método, sob o qual a prática científica desta Revolução supostamente foi guiada, funcionava partindo da observação de fenómenos no mundo natural para a formação de hipóteses explicativas que pudessem ser testadas empiricamente de forma sistemática.

Como podemos deduzir, o método só se aplica a fenómenos do mundo natural. É impossível fazer testes empíricos (sistemáticos ou não) para hipóteses que procuram explicar fenómenos que ocorrem fora do reino natural, fora daquilo que pode ser experienciado com os sentidos. Os sucessos deste método em obter conhecimento sobre o mundo natural, combinado com elementos ideológicos dos protagonistas da Revolução, fizeram com que, em parte imediatamente, em parte apenas com o desenrolar da história da Modernidade, todo o conhecimento que não se baseasse na experiência deixasse de ser considerado conhecimento — deixasse de ser chamado pelo nome “ciência”.

O modo como este processo ocorreu é complexo e já foi abordado por mim em outros textos, bem como as consequências que esta virada teve em todos os níveis do nosso entendimento do mundo (até mesmo a nível ético). Mas o assunto deste texto é a ciência. Aceitarmos que o conhecimento científico é apenas o das ciências naturais, bem como aceitar a palavra da “comunidade científica” como o resultado do pináculo do conhecimento humano, tem um significado mais profundo do que podemos supor quando falamos de ciência de uma forma mais banal.

Falar assim da ciência é, implicitamente, aceitar que o conhecimento empírico é o único conhecimento sistemático possível. É aceitar que, seja o que for que podemos pensar sobre aquilo que não podemos verificar com os sentidos, seja o que for que pensemos sobre religião, ética, estética, e por aí além, não podemos dizer que se trate de conhecimento. Se não é verificável empiricamente, não é “científico” — ou seja, não podemos saber. Mas será que isso é verdade?

O que é a ciência, realmente?

Talvez, um ponto de partida mais correto para entender a ciência seja, em vez da observação empírica, o pensamento. O termo latim para conhecimento e ciência é scientia, mas o termo grego é logos. As ciências são todas “logias” por serem a junção de um assunto específico com o pensamento sistemático científico: “biologia” é a junção de bio (que significa “vida”) com logia (ciência). O termo logia vem de logos, que na Grécia era usado tanto com o significado de “razão” como de “palavra”. A linguagem, a palavra, é sempre o modo como estruturamos o nosso conhecimento racional. Então faz mais sentido ver a sua raíz no pensamento, que é linguístico, e não na “observação” (que é um conceito estranhamente difícil de entender, de qualquer das formas).

Mas quando alguém exprime um pensamento em palavras, existe um grande número de pensamentos presentes na sua mente que não são expressos de forma explícita na sua afirmação. Digamos que estou a andar pela rua e vejo uma torre de metal com uma lâmpada no topo. Posso dizer “é um poste de iluminação”, significando que ele foi lá colocado para iluminar as ruas durante a noite. Quando eu decido que ele foi colocado onde está por esta razão, pressuponho que ele foi colocado lá por alguma razão. Sem esta pressuposição, de que há um propósito para a posição do poste, nunca poderia surgir a pergunta “Qual é o propósito para a posição do poste?”. E sem esta pergunta, não haveria a resposta: “O propósito é a iluminação das ruas durante a noite”.

Qualquer afirmação, qualquer pensamento (descritivo) que possamos ter, é sempre uma resposta a uma potencial pergunta. Sem perguntas, não há conhecimento, porque não temos nenhuma resposta para encontrar. As perguntas a que respondemos ditam o interesse que temos na realidade: sem perguntas para responder não temos razão para direcionar a nossa atenção a nada. Acontece que a nossa mente é uma máquina de perguntas: no mínimo, temos de saber sobre o nosso ambiente, “será que posso comer aquilo?”, ou “será que isto é perigoso?”, etc. Para responder a estas perguntas, direcionamos a nossa atenção a algo em específico e obtemos conhecimento sobre este algo quando respondemos às nossas perguntas sobre ele.

Quando pensamos cientificamente, sabemos bem qual é a pergunta à qual estamos a responder. No pensamento não-científico, por outro lado, mal sabemos que estamos a responder a alguma pergunta: os pensamentos simplesmente irrompem na nossa mente, e é apenas depois de alguma análise posterior que poderemos compreender do que estávamos a falar. Ao ver um poste e pensar “é um poste de iluminação”, não sabia imediatamente que estava a responder à pergunta “para que serve esta coisa?”.

No pensamento não-científico, mal sabemos que estamos a pressupor de todo. Quando eu me deparo com algo e digo “é um poste de iluminação” sem analisar o meu pensamento, posso simplesmente supor que fui confrontado com algo que é, em si mesmo e à parte do que qualquer um pense sobre isso, um poste de iluminação. Assumir que as coisas estão lá e são exatamente e intrinsecamente como nós as apreendemos sem necessidade de análise, contudo, é pensar com quase zero por cento de eficiência, é um tipo de pensamento tão casual e desordenado que mal qualifica como pensamento.

Mas se o homem foi capaz de dominar as forças naturais à sua volta, se o homem foi capaz de criar civilizações e impérios, tudo apenas a partir do seu próprio trabalho, isto se deve ao facto de o homem possuir, em adição ao pensamento casual, um tipo superior de pensamento — o pensamento científico. O pensamento superior é energético, não ocioso: pensar duro e com rigor, em vez de deixar a mente à deriva.

É importante notar, contudo, que simplesmente pensar duro não basta: o esforço intelectual (ou não) tem de ser bem direcionado para que não seja uma perda de tempo e energias. Quando nos damos conta que podemos pensar mais duro, deixamos de nos satisfazer com o que vem a nadar em direção à nossa boca, queremos o que não está lá e não virá por si mesmo. Então vamos à caça. A busca da mente pelas suas presas chama-se fazer perguntas. Mas muitas vezes não basta ir à caça, temos de caçar de forma inteligente. Fazer perguntas com habilidade e inteligência, portanto, é fazer perguntas cientificamente.

O pensamento científico acontece apenas depois de uma espécie de análise das nossas perguntas, do que cada coisa implica, desatando os nós da nossa consciência não-científica, sistematizando e organizando a nossa compreensão do mundo. Pensar cientificamente é separar as coisas, organizá-las, em vez de pescar pensamentos todos grudados e cheios de algas e mariscos, dando-nos por satisfeitos por ter pescado qualquer coisa de todo. Pensar cientificamente é limpar a bagunça, reduzir os nós dos pensamentos a um sistema em que tudo se encaixa, em que pensar um pensamento é ao mesmo tempo pensar as suas conexões. É por isso que é pensamento racional: lembremos que a raiz latina deste termo é ratio, que significa “ordem” e “proporção” — a razão é a harmonia que encontramos no mundo e nos pensamentos que temos dele.

As respostas que damos às perguntas, por outro lado, são as “proposições”: afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Nem todas as frases podem ser verdadeiras ou falsas: se dizemos a alguém “traz-me aquilo”, não estamos a propor nenhum tipo de informação, não estamos a responder a nenhuma pergunta. Se uma frase não é uma resposta, não podemos classificá-la como uma boa ou má resposta (isto é, como verdade ou falsidade). Mas sempre que descrevemos algo, sempre que propomos com a linguagem alguma informação sobre o mundo, estamos a responder a uma pergunta — e é por causa disso que podemos estar errados ou não.

Ademais, toda a pergunta envolve (pelo menos) uma pressuposição, sem a qual a pergunta não poderia ser feita com sentido. Não há impossibilidade verbal, por exemplo, em perguntar a uma criança de 5 anos, que eu sei que é solteira, como têm sido os últimos anos do seu casamento; mas há uma impossibilidade lógica — a pergunta não faz sentido, é absurda. A pergunta não é absurda intrinsecamente, mas apenas em relação ao seu contexto, em relação às pressuposições sob as quais é feita — nomeadamente, que a criança nunca foi casada.

Durante a nossa vida quotidiana, não precisamos nos dar ao trabalho de nos tornarmos conscientes das pressuposições que fazemos: quando estamos a resolver um puzzle de xadrez, a tentar responder a pergunta “qual é a solução?”, não há necessidade nenhuma de interromper a nossa atividade para nos tornarmos conscientes de que “há uma solução”. Com efeito, Jordan Peterson argumenta no seu livro Maps of Meaning, com um vocabulário e contexto um pouco diferentes, que na nossa vida prática, quanto mais pressuposições nós pudermos fazer com segurança, melhor. As pressuposições indicam algo que já foi organizado, que já está em ordem. O que ainda não pressupomos, o que ainda não tomamos por garantido, diria Peterson, é o desconhecido, o elemento de caos na nossa vida, os problemas ainda por resolver.

Mas então o que é a ciência!?

Agora que já foi clarificado o modo científico de pensar, ou seja, o rigor com relação às perguntas feitas e as suas pressuposições, podemos entender o que é uma ciência propriamente dita. Em vez de limitar-nos a classificar como ciência os assuntos que partem da observação do mundo natural, podemos classificá-las por assunto, por objeto de estudo. Podemos chamar ciência ao conjunto de perguntas e respostas à volta de um assunto. Para que este assunto possa conter uma área vasta de perguntas dentro dele, ele tem de ser abstrato ou universal: a física estuda “o movimento” como um todo, não um movimento em específico apenas; a matemática estuda “as quantidades”, não apenas uma quantidade ou as relações de soma de quantidades.

Mas esta universalidade é sujeita a graus: o abstrato “número”, por exemplo, é dividido entre “números pares” e “números ímpares”, noções também abstratas e universais, mas que pressupõem a de “número” para existirem. Teoricamente, qualquer universal pode ser assunto de uma ciência, mas na prática só se faz ciências dos universais que é conveniente estudar como um assunto distinto. A quantidade, por exemplo, é o objeto de estudo da matemática. Pode ser contínua ou medível/discreta: a geometria é a ciência especial da quantidade contínua, a aritmética da quantidade medível. Cada uma delas segue o seu caminho, mas elas concordam em certos princípios, que pertencem a uma ciência mais universal ou abstrata, a ciência dos números, da quantidade não especificada — a matemática.

Do ponto de vista da aprendizagem, as ciências mais abstratas vêm depois: começamos por aprender partindo do mais particular em direção ao mais abstrato. Antes de saber o que é um cão, temos de ver alguns cães e outros animais, temos de entender o particular para que as caixas gerais façam sentido. Do ponto de vista lógico, contudo, os universais vêm primeiro: as ciências mais gerais são o fundamento das particulares. Não podemos entender o que é um cão sem saber o que é um animal, nem o que é um animal sem entender o que é um ser vivo, e assim por diante.

Todos os universais manifestam este padrão: todos os padrões são na verdade parte de um padrão maior, eventualmente fazendo parte de um único padrão completamente universal. Qualquer ciência dentro deste esquema funciona assim. Mas o sistema não é infinito, pelo que há de existirem extremidades no topo e no fundo. Este tipo de sistema foi concebido pela primeira vez por Porfírio, filósofo grego do século III D.C.. Porfírio organizou uma escala do Ser dividida em “géneros” e “espécies”: os géneros são divididos em espécies, que são divididas em sub-espécies, tornando-se géneros destas espécies. Na base do sistema temos espécies infima species, que não geram sub-espécies subsequentes, e no topo temos o summum genus, o género que não é espécie de nenhum género, o género maior a partir do qual tudo o que é se divide.

Se a ciência é um pensamento organizado e sistemático, hierarquizado do ponto de vista lógico por relações de pressuposição, ela necessariamente vai ter de formar um esquema como este. Algumas ciências são mais gerais (palavra derivada de genus, termo latim para “género”) e teóricas, mais abstratas; outras são mais específicas (que vem de species) e práticas, mais concretas. A hierarquia tende inevitavelmente a formar-se em forma de pirâmide. A medicina seria impossível sem a biologia, que seria impossível sem a química, que seria impossível sem a física, que seria impossível sem a matemática, que seria impossível sem a metafísica — mas ao contrário a mesma relação não se aplica.

Se as ciências se organizam pelo nível de abstração e universalidade do seu objeto, o summum genus tem de ter uma ciência que lhe seja correspondente. Esta ciência deve estudar tudo o que existe, enquanto existente. A ciência que estuda o Ser, a ciência que estuda os summum genus, é a Metafísica — a mãe de todas as outras ciências.

Para entendermos esta relação melhor, penso que podemos tirar muita utilidade de uma ideia de Robin Collingwood. As pressuposições que fazemos, diz o filósofo inglês, podem ser ou relativas ou absolutas. Uma pressuposição relativa é uma afirmação que funciona como pressuposição para uma pergunta, mas ao mesmo tempo funciona também como resposta a uma outra pergunta. A afirmação de que “certos químicos podem afetar o estado de saúde do ser humano” é pressuposta por todas as perguntas feitas no contexto da farmacologia, mas é uma resposta que podemos obter a partir de perguntas no contexto da biologia e da química. Então é uma pressuposição ou una resposta, dependendo do contexto — i.e., é uma pressuposição relativa.

Como as pressuposições relativas são respostas a outras perguntas (mais gerais em âmbito), sabemos que elas estao sujeitas a confirmação ou rejeição. As pressuposições absolutas, por outro lado, nunca funcionam como resposta a qualquer pergunta: são simplesmente algo que tem de ser tido como verdade para qualquer forma de pensamento científico fazer sentido.

Podemos entender melhor o que é uma pressuposição absoluta da seguinte forma. O processo do pensamento científico face a perguntas tem duas fases: desatar os nós e organizar os fios soltos. Se um cretino me perguntar “Já deixaste de bater na tua mulher?”, eu, enquanto pensador hábil e científico, posso desatar os nós desta pergunta, que na verdade são quatro perguntas de uma vez:

“Tens uma mulher?”; “Tiveste alguma vez o hábito de bater nela?”; “Tens a intenção deixar de fazê-lo no futuro?” e “Já começaste a executar esta intenção?”.

Os fios desatados agora têm de ser ordenados, porque temos de responder a algumas perguntas antes de podermos responder às outras. O pensamento científico é ordenado no sentido em que lida com as perguntas na sua ordem lógica, pondo o que é pressuposto antes do que se pressupõe. Assim, o método de todo o pensamento científico inclui a constante pergunta “isto pressupõe algo?”, até chegarmos ao ponto em que a resposta é não — às pressuposições absolutas.

Digamos que eu fui ao médico por causa de alguma doença e ele me explicou que a minha doença, “X”, é causada por “Y”, e até mesmo que isto tinha sido descoberto recentemente num artigo científico qualquer. Se eu perguntar “Mas então o cientista que descobriu isto estava bastante certo que X tinha uma causa, mesmo antes de descobrir que era Y, não?”, o médico presumivelmente responderá que sim. Se eu ainda perguntar “Por quê?”, ele poderá responder que “É por que tudo o que acontece tem uma causa”. Se eu for inoportuno o suficiente para perguntar “Mas como você sabe que tudo o que acontece tem uma causa?”, o médico pode chatear-se comigo, porque eu toquei numa das suas pressuposições absolutas — e as pessoas são sensíveis quanto às suas pressuposições absolutas. Sem acreditar nisso, a sua profissão não faria sentido nenhum.

Não é preciso muita análise para encontrar pensamentos que tomamos por garantido sem justificar. Muitas vezes, não por pensarmos que seria absurdo tentar justificá-los, mas por não analisarmos com muita determinação. Nestes casos, não sabemos se as pressuposições são absolutas ou relativas. Pode parecer que isto seria algo simples de se descobrir, tendo o mínimo de inteligência e honestidade intelectual, mas nestes assuntos as pessoas têm mais motivos para se enganar do que pode parecer. Quando certos pensamentos são recebidos com reprovação, as pessoas podem se levar a distâncias notáveis para encobri-los.

Hoje em dia, por exemplo, pressuposições absolutas estão um tanto fora de moda, tendo em conta o mindset de “ceticismo científico" (i.e., ceticismo empirista) presente desde os tempos modernos — veja-se David Hume. Apesar de existir um consenso geral de que as pressuposições são todas relativas, as pessoas ainda têm uma grande aversão a ter as suas pressuposições absolutas desafiadas — o que é normal. Ser sensível quanto a estas pressuposições é sinal de saúde intelectual combinada com baixas capacidades analíticas — é saber “instintivamente” que estas afirmações não devem ser colocadas em questão.

São justamente estas as pressuposições que a Metafísica estuda — as absolutas. Aquilo do qual tudo depende, aquilo que não pode ser questionado (para que o resto do conhecimento faça sentido): é por esta razão que Aristóteles, o criador da Metafísica como ciência, também usava o nome de Teologia para se referir a ela. É a ciência mãe, sem a qual nenhuma outra é possível.

É claro, contudo, que com a prática do pensamento científico e análise metafísica, perdemos, em grande parte, esta sensibilidade ao questionamento das pressuposições absolutas — mas nunca inteiramente. É difícil negar que há algo de misterioso e inquietante sobre as pressuposições absolutas. Este terror metafísico importava menos quando as pessoas tinham métodos bem estabelecidos para dissipá-lo (“mágica”, nós o chamamos). No nosso tempo as pessoas se orgulham de ter exterminado a magia e não terem superstições nenhumas. Mas continuam a ter, tanto quanto antes — a diferença é que foi perdida a arte, que será sempre uma arte mágica, de conquistá-las.

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