Terapia Filosófica #4 — Porquê ser moral?

Raphael Mees
11 min readAug 7, 2020

Não é à toa que é tão difícil convencer alguém de fazer a coisa certa. Quando um ser racional se vê numa certa situação, tendo certas crenças, prestes a fazer qualquer coisa, a sua razão lhe permite, em qualquer caso, dar um passo atrás e perguntar: “Porquê?”: “Porquê esta(s) crença(s)?” “Porquê esta decisão?”

Esta capacidade é talvez a mais importante entre todas as capacidades dos seres humanos. Ser capaz de perguntar “Porquê?” é o que nos permitiu considerar caminhos alternativos, outras estratégias para conseguir o que queríamos, e escolher a melhor. O “Porquê?” nos permite controlar o impulso e escolher o caminho com mais justificação racional. Não escolhemos o primeiro caminho que se apresenta, mas o que parece mais razoável. Este poder de escolha é, entre outras coisas, o que significa ser humano.

Toda a nossa cultura pode ser vista como uma sabedoria prática que nós, enquanto sociedade, adquirimos ao longo das gerações. A nossa maneira de conviver, os nossos rituais, trabalhos, toda a nossa atitude perante o mundo, que aprendemos desde a infância com a convivência com outras pessoas, é o conjunto de coisas que na prática se mostraram mais valiosas para nós. Se o que foi argumentado nas sessões anteriores é correto, então é daí que vem o nosso sentido de moralidade (bem como as nossas práticas científicas, matemáticas, etc. — em suma, é daí que vem a nossa maneira de ver e entender o mundo).

Isto significa que a razão humana não é puramente lógica formal: nós só funcionamos com o material que temos, com o material que “preenche a forma”. Como já sabemos, esta é a posição de John McDowell, e é por causa dela que ele não tem a saída fácil que Kant encontrou nos debates morais. Para Kant a moralidade era uma lei universal da razão que qualquer ser racional conseguiria atingir. Por causa disso, quem não agisse de acordo com o que a moralidade (vista como este sistema universal independente das nossas práticas, ou até mesmo da nossa existência) dita não seria mais do que irracional. Não há debate para ser feito, é tão simples quanto uma dedução.

Para McDowell o nosso processo para chegar ao conhecimento da virtude não é inteiramente racional, pelo que as circunstâncias da vida de alguém podem levá-lo a ignorar as razões morais corretas. Acusar um cético moral de irracionalidade, nesta visão, seria algo como alguém ser acusado de irracionalidade por não ver razões para gostar de jazz modal, apesar destas razões existirem. O ponto é que estas razões só seriam capazes de mover alguém que partilhasse de início alguma concepção de uma certa maneira ética de ver a vida (ou estética de ver a música, no caso do jazz modal). Mas se as razões morais só são razões para quem já é moral, temos um grande desafio no que toca ao último cético: o cético prático. Talvez o que mais precise de terapia no sentido não filosófico da palavra, este é o cético que coloca o seguinte problema: “E se eu não quiser saber de ser uma boa pessoa? Que razão tenho eu para ser moral?”

Aqui, armado em sábio, McDowell oferece uma parábola. Considere-se um lobo racional. Este lobo seria capaz de especular sobre coisas muito distantes do que passa pela cabeça de um lobo normal. Essa capacidade teórica elevada, argumenta McDowell, seria necessariamente acompanhada de agência livre, ou seja, uma razão prática: o lobo seria capaz de considerar possibilidades alternativas às suas ações, bem como questionar qual delas seria a melhor. Assim, este lobo poderia, numa situação de caça, por exemplo, perguntar-se “por que haverei eu de me esforçar na caça se eu posso apenas passear pela floresta e receberei uma parte da presa na mesma?”. Uma resposta como “os lobos têm de juntar os seus esforços para que o seu sistema de caça seja eficiente” não necessariamente impressionaria o nosso lobo reflexivo: ele não espera que os outros ajam como ele.

Uma afirmação do tipo “os lobos precisam de tal e tal” é o que Michael Thompson chama, no seu The Representation of Life, um categórico aristotélico. Os poderes lógicos deste tipo de afirmação são peculiares: o que se afirma da espécie não necessariamente se pode afirmar com verdade de todos os indivíduos da espécie. “Os humanos têm 32 dentes” é verdade, mas não é por isso e pelo facto de eu ser um humano, que “Eu tenho 32 dentes” seja verdade — com efeito, não é. É claro que esta fraqueza lógica dos categóricos aristotélicos não causa problemas para lobos irracionais: é a racionalidade do lobo que o permite analisar os factos sobre a sua espécie de um ponto de vista crítico, podendo notar que o facto de esta não se transferir dedutivamente para ele, significa que ele pode ter razões para agir de forma contrária a eles.

Aqui acho que já se nota o problema: o lobo quer usar a razão para procurar fundamentos morais vindos de fora da moral, quer deduzir regras morais de algum lado. Como já vimos, isto é impossível. Mesmo assim, o problema se mantém. Se não podemos “obrigar” o lobo racionalmente, como podemos dizer que a moralidade vem da racionalidade?

A razão permite ao lobo perguntar-se, não sobre lobos em geral, mas sobre si mesmo: “O que eu devo fazer?”. Como a razão do lobo não encontra regras que o forcem a eleger a moralidade, o trono vazio pode facilmente ser preenchido pelo seu interesse individual. Não seria surpresa que o lobo pensasse que a sua razão o permitia transcender a sua natureza de lobo (apesar de, é claro, apenas parcialmente — os desejos do lobo ainda seriam os de um lobo: muita carne, não se cansar muito, etc.), explorando os lobos “do pasto” (neste caso, da alcateia) em perseguição dos seus interesses individuais; adotando uma posição nietzschiana, superando a sua natureza de lobo para realizar a sua natureza própria — de ser racional.

Aqui a noção de natureza é usada de duas formas distintas, e o lobo não precisa negar nada acerca da primeira para não a seguir: o lobo pode muito bem saber que um bom lobo é aquele que se esforça na caça e mesmo assim decidir racionalmente não agir desta forma. O mesmo se aplica à necessidade natural dos homens às virtudes, pois ela também não torna irracional duvidar que as virtudes sejam racionalmente necessárias (exatamente porque não são — a determinação não formal do intelecto prático confere uma contingência inerente a qualquer maneira moral de pensar).

Agora é hora de recordar uma alegoria feita na sessão anterior para resolver o problema atual: a concepção Neurática da reflexão. Ver a reflexão racional como um exercício “Neurático” é compará-la ao trabalho do homem que constrói o seu barco ao mesmo tempo que navega. Entrando mais profundamente na metáfora, podemos dizer que nascemos já no mar, rodeados de água, e só não nos afogamos porque também temos outras pessoas connosco, que nos dão peças para construirmos um barco. Estas peças seriam algo como os nossos valores, aquilo que nos permite ver as coisas como coisas e, consequentemente, escolher quais são melhores e piores, formando o nosso próprio caminho. As peças do barco que construímos nos permite navegar pelo mar da vida, e sem peças nos afogaríamos.

Para podermos navegar bem, a uma dada altura teremos de ser capazes de analisar nós próprios as peças do nosso barco. Ou seja, chega um momento em que já não precisamos de depender unicamente das peças que nos dão, podendo analisar por nós próprios o valor de cada uma. Isto porque, por maiores que tenham sido as conquistas dos nossos antepassados e por melhores que sejam as peças que eles nos deram, “pinguém é nerfeito”. Algumas das peças do nosso barco podem não ser tão boas, ou podem vir a apodrecer com o tempo. A análise racional da nossa maneira de ver o mundo, isto é, a reflexão moral, é essencial para identificar estas peças defeituosas e substituí-las. De facto, a razão é capaz de, dada qualquer peça, questionar se esta peça está adequada ou não. Voltamos a ver a nossa capacidade de perguntar “Porquê?”.

Mas só podemos tirar poucas peças de cada vez, para evitar vazamentos no barco. Se alguém decidir duvidar de todas as peças ao mesmo tempo, vai-se afogar. Não é surpresa que os existencialistas, confrontados com o que parecia ser uma “liberdade radical”, com poder fazer qualquer coisa e não ter mais que arbitrariedade para escolher entre uma coisa e outra, sentiam angústia. Afogar é angustiante, mas não nos precisamos expor a isso.

Os princípios éticos não são universais, e a dúvida quanto às questões éticas também não pode ser: devemos ser capazes de, caso a caso, revisar o que a natureza nos diz; adquirindo, através desta reflexão Neurática, uma visão de mundo capaz de reconhecer o valor das ações virtuosas e um prazer distinto em realizá-las. Não é irracional questionar a razão ética, mas é irracional abandoná-la por completo.

Imagine-se que um lobo cuja aquisição de razão prática inclua a iniciação numa tradição na qual o comportamento cooperativo na caça é considerado admirável, e até digno de ser procurado por si próprio. O que este lobo pode precisar é de alguma reflexão que lhe assegure de que quando adquiriu uma segunda natureza com esta forma, os seus olhos estavam abertos para as verdadeiras razões para agir. Esta reflexão é Neurática, pelo que o lobo não se deve preocupar com o facto de algum lobo de fora desta tradição ou que se desvencilhou dela não veja as razões que ele vê: elas só são visíveis de um ponto de vista que permite visão (obviamente).

Uma coisa importante a se ter em mente, contudo, é que a reflexão Neurática é uma “meta-reflexão”: é uma reflexão sobre o que conta como razão para agir para nós. Por causa disso, ela não afeta diretamente (ou não deve afetar) as nossas ações. O que influencia a vontade são as coisas que já são segunda natureza. Muitas vezes agir virtuosamente envolve auto-sacrifício: a coragem, por exemplo, envolve fazer a coisa certa mesmo à frente do perigo. Como explicar então, o facto de muitas vezes este perigo poder envolver o risco à própria vida do agente? Como seria racional agir de forma corajosa se isso poderia resultar, mesmo que a chance fosse ínfima, no caso de o agente não estar lá para poder concluir o projeto que foi a razão da ação em primeiro lugar?

A resposta é que a coragem é primeiramente uma questão de ser um certo tipo de pessoa: uma pessoa corajosa não pode ser a que está pronta a reconsiderar as vantagens de agir de forma corajosa em ocasiões em que agir nestas motivações pareça pouco atrativo — parte do que é ser corajoso é não abrir a possibilidade de questionar certas razões em certas ocasiões. Isto não significa que a coragem seja um apelo ao abandono da razão em nome de uma aderência cega a um princípio, porque as decisões já foram feitas (e assimiladas pela nossa razão prática) de antemão.

Assim, apesar de não ser irracional perguntar “Por que ser moral?” ou “Por que querer saber de ser uma boa pessoa?”, as pessoas que de facto são morais e boas pessoas simplesmente não são o tipo de pessoa que se perguntam este tipo de coisa, especialmente na “hora H”. É interessante pensar como Aristóteles: as pessoas virtuosas não são as que são tentadas com fazer o mal e, com muito sofrimento, conseguem se conter e fazer o bem. Ser virtuoso é ter a sua segunda natureza perfeitamente em harmonia com a sua razão prática: um homem virtuoso é o que não só vê as razões certas e sabe como deve agir, como ainda tem prazer em agir desta forma. Para ele não há dúvida de que esta é a melhor maneira de agir.

Qualquer segunda natureza, não apenas a virtude, será capaz de fornecer o agente com razões para agir. O que é distintivo da virtude, na visão aristotélica, é que as razões que uma pessoa virtuosa vê são realmente razões — a pessoa virtuosa é o tipo de pessoa que acerta neste tipo de coisas. Aqui surge, porém, um problema que penso que McDowell não pode dissolver como fez com o anterior.

Se pensarmos num lobo criado com “bons valores” e que de súbito começa a duvidar de tudo , podemos mostrar como a sua atitude é desmedida. Mas suponha-se, por outro lado, o caso de um lobo que, ao contrário do último, não foi criado com bons valores: este lobo cresceu numa alcateia em que cada lobo olhava por si mesmo e se via como inimigo do próximo lobo, a cooperação na caça era apenas uma fachada e sempre que conseguiam, os lobos roubavam o máximo de comida para si, chegando a matar companheiros para poderem comer mais. Este lobo cresceu com valores egoístas, para ele as razões são apenas razões de interesse próprio, foi assim que ele foi habituado e treinado a ver o mundo.

Penso que McDowell não é capaz de resolver este problema (e não sou o único) por causa da sua concepção da natureza do nosso processo de educação moral. Para McDowell a nossa educação moral é essencialmente irracional: apenas aceitamos passivamente os valores (as peças do barco) que nos dão. Por causa disso, ele é levado a admitir que seria impossível convencer alguém com uma má formação a ver as coisas da maneira certa com argumentos racionais, já que as nossas razões são simplesmente diferentes. Assim, o lobo egoísta teria de passar por um momento de conversão para ver as coisas apropriadamente — algo como uma experiência religiosa ou uma viagem a outra dimensão (suponhamos que o lobo decidiu ser vegetariano e comeu os cogumelos errados por engano).

Neste ponto ouso oferecer um pouco de terapia ao próprio McDowell. Parece que este problema só nasce por causa da crença (da peça desnecessária no seu barco) de que um processo de aprendizagem ou é racional ou não é. Penso que a nossa formação moral é feita em conjunto, tanto de apelos à nossa razão como de habituação a certos costumes que nos são “impostos” mais ou menos como regras. O papel da razão na nossa educação moral é evidente, por exemplo, no facto de muitas vezes nós sermos capazes de nos rebelarmos contra algum costume com o qual crescemos mediante um questionamento das suas credenciais racionais. Até crianças conseguem ver como muitas coisas do mundo dos adultos não são justas.

É verdade que, como aponta McDowell, apenas as coisas que já são segunda natureza, apenas as considerações que já foram aceites na nossa estrutura conceptual deliberativa, influenciam a nossa vontade. Também é verdade que estas coisas só se tornam segunda natureza através da sua prática consistente — um processo que pouco tem de racional. O meu ponto é unicamente que nós somos racionalmente responsáveis por melhorar o nosso barco: verificando que uma peça falha a inspeção racional, seria irracional mantê-la. Por causa disso, penso que McDowell subestima a influência que uma conversa, a leitura de um bom livro ou qulaquer coisa do género possa exercer sobre a nossa razão no que toca a pontos morais. Se um amigo meu me fornecer bons argumentos para não ser egoísta, não é descabido imaginar que ele me possa convencer de que a minha habituação foi errada e que esta conversa me faça guiar o meu barco em direção a eliminar, gradualmente, a influência negativa que esta formação teve em mim.

Peça a peça, vamos chegando a uma versão mais aperfeiçoada que a anterior, nos aproximando ao longo da nossa vida de um ideal de virtude — e isto é possível para todos, mesmo os que nascem com barcos em péssimo estado, porque nascemos todos com um construtor lá dentro. Uns têm mais trabalho que os outros, mas de grão em grão, qualquer galinha enche o papo, e um lobo sem alcateia morre de fome.

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