Terapia filosófica #3 — como (re)conhecer a verdade moral?

Raphael Mees
8 min readAug 2, 2020

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Foi no auge do meu ceticismo, há uns dois anos, que li pela primeira vez o melhor e talvez o mais bonito livro de filosofia que eu conheço, a Ética a Nicómaco, de Aristóteles. Lembro-me de ter ficado desapontado quando, logo no início do livro, Aristóteles dispensa-se da obrigação de fornecer uma fundamentação para o que ele diz serem as virtudes do carácter humano, dizendo que os que tiveram uma boa educação o reconhecerão como sendo assim.

Na época era um grande fã de Albert Camus (a admiração mantém-se), filósofo argelino criador do “absurdismo”. Ao ler as suas obras encontrava-me de frente com uma verdade que parecia absoluta sobre a nossa condição no mundo — tanto que, em várias ocasiões, de facto experienciei o sentimento do absurdo que ele descreve tão bem na sua obra O Mito de Sísifo. Como qualquer um entre nós que tenda para o lado reflexivo, Camus conta como tentou descobrir a verdade das coisas, como tentou conhecer, realmente conhecer, aquilo que estivesse por trás das nossas “construções”.

“Neste ponto do seu esforço, o homem encontra-se ante o irracional. Sente nele o seu desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoável silêncio do mundo.”
— O Mito de Sísifo, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Editora Livros Brasil, pgs. 36–37

Com o que vimos da sessão anterior, contudo, já temos um pé fora do deserto de areias movediças em que o Dr. Mersault matou aquele árabe. Um terapeuta particularmente versado em filosofia analítica do século XX poderia lhe dizer que talvez o seu sentimento de absurdo venha de ele procurar as suas respostas no mundo. Isso porque, seguindo Wittgenstein, podemos dizer que o que confere objetividade às nossas regras e maneiras de proceder no mundo não é o mundo, são as nossas práticas.

Aliás, John McDowell, o nosso terapeuta titular, ligou este ponto à filosofia ética de Aristóteles. Na já mencionada Ética a Nicómaco, Aristóteles disse que a pessoa virtuosa é aquela que possui a phronésis, a “sabedoria prática” (outra tradução possível, especialmente interessante para McDowell, é “segunda natureza”). A sabedoria prática não é a capacidade de conhecer a verdade moral profunda que existe no universo, escondida por trás das aparências. O homem virtuoso é simplesmente alguém que, por causa da maneira como o seu caráter foi formado, é capaz de analisar cada situação da maneira correta e decidir, naquele momento, qual é o curso de ação mais acertado.

McDowell argumenta que o facto de Aristóteles não se dar ao trabalho de justificar a sua classificação das virtudes, que pode parecer aos olhos de um cético um tanto arbitrária, vem de uma “inocência” quanto ao poder da nossa racionalidade. Foi apenas com a modernidade que começamos, à maneira de Hamlet ou Descartes, a duvidar de tudo e perder a fé na nossa capacidade de atingir a verdade por nós próprios. Anteriormente a este ceticismo radical típico da modernidade, a ética não precisava de um fundamento externo — as virtudes não precisavam ser baseadas em factos científicos ou qualquer coisa do género.

Dito noutras palavras: o intelecto prático (o que usamos para tomar decisões e fazer avaliações morais) não não é feito apenas de configurações formais — não são apenas a lógica ou os factos científicos acerca da nossa espécie que informam as nossas visões éticas. A cultura e a maneira como a nossa sociedade funcionou desde sempre, ou seja, as nossas práticas, apesar de contingentes, também são fulcrais na definição dos nossos valores.

Uma maneira interessante de entender este assunto é a seguinte: toda a história começa in media res, e a nossa não é excepção. Quando nascemos não iniciamos um mundo do zero, somos colocados numa posição específica numa sociedade que já possui um vasto conjunto de valores que preenchem a nossa vida e nos forma como indivíduos. Assim, a análise que McDowell propõe que façamos da ética é, seguindo Aristóteles, de dentro para fora, e não de fora para dentro.

O que McDowell propõe é que uma concepção Neurática da reflexão (isto é, da reflexão ética como a de um homem que vai arranjando e reconstruindo o seu barco enquanto navega) é suficiente para alcançar a transição do “quê” (os factos com os quais qualquer pessoa bem criada nasce) ao “porquê” (a sabedoria prática). O intelecto opera sempre a partir de propensidades motivacionais já nele moldadas, e vai-se corrigindo no caminho através da reflexão, sem precisar de material nenhum sem ser o que já tem — sem precisar de justificação externa. O desacordo moral não tem uma solução externa, não existe um trilho no mundo que possamos conferir para ver quem se desviou dele: resolvemos as diferenças com uma prática que todas as culturas têm em comum, a discussão racional. Os que fizerem os melhores argumentos, os melhores apelos à razão, são os que podemos dizer que estão certos.

O que isto quer dizer é que, em vez de partir de princípios morais decididos racionalmente e anteriormente à nossa vida prática, como que num exercício de “razão pura”, de forma que a pessoa virtuosa é aquele que segue o código que foi determinado, devemos definir o que é agir moralmente a partir do que as pessoas virtuosas fazem: ser moral é agir como agem os virtuosos. As virtudes em si são como que pressupostas.

Seguindo o modelo da Ética a Nicómaco, McDowell diz que é a intencionalidade (“purposiveness”) de uma ação que mostra o caráter moral do seu agente. Todas as ações (inclusive a dos animais e brutos) têm purposiveness, mas a dos humanos é especial por ser racional, envolver deliberação. No entanto, como ações humanas que não são fruto de deliberação também mostram o caráter ético do agente (não me parece que um bom pai de família delibera antes de tratar mal os empregados de mesa de um restaurante, por exemplo), podemos entender Aristóteles como dizendo que é a estrutura conceptual com a qual deliberamos que é relevante na análise das ações, fruto de deliberação consciente ou não. É esta estrutura que revela os valores implícitos na maneira como vemos o mundo.

A filosofia de McDowell é muito baseada na concepção de percepção como “abertura ao mundo”: nós vemos uma faca como de metal, como de cor de metal, como perigosa, etc. Semelhantemente, vemos as ações, as pessoas ou os planos que fazemos como possuidores de certas propriedades morais. O próprio Aristóteles duvidava da possibilidade da formulação de princípios universais no domínio da ética, pensando na phronésis, a sabedoria prática, como uma capacidade perceptiva. Uma pessoa virtuosa, portanto, seria aquela que é capaz, por uma certa intuição, de ver (e corretamente) quais são as circunstâncias relevantes para a ação numa dada situação. Mas então se vemos as ações como possuidoras de propriedades morais conforme a nossa cultura, como explicar os desacordos morais na mesma cultura? Certamente não se passa o mesmo com a cor das flores.

A estrutura conceptual deliberativa de um agente virtuoso estará presente em alguns (os virtuosos) mas não em todos. O intelecto prático deve ser adequadamente formado para que certas razões se tornem visíveis (embora não seja contrário à razão não ser virtuoso), e dessa forma a virtude acaba por tornar‐se um hábito, não por instinto ou inércia, mas por meio de uma formação em certas práticas sociais que depois se tornará uma espécie de segunda natureza. Este ponto combina especialmente bem com a ideia do nosso conhecimento como dependente das nossas formas de vida, que McDowell tira de Wittgenstein.

Para McDowell, o que explica o facto de haver uma razão para o agente fazer qualquer coisa é a circunstância em que o agente se encontra e a capacidade que o agente pode ter ou não de descortinar isso: a decisão é feita sempre de acordo com as particularidades da situação, mas auxiliada por um esquema conceptual de deliberação racional, não simplesmente pelas motivações subjetivas do agente. A virtude moral adquire‐se unicamente pelo hábito — isto é, adquire‐se praticando as actividades relevantes. Aliás, é daqui que vem a frase preferida de tantos self-made entrepreneurs, “A excelência, portanto, não é um acto, mas um hábito”. É aquele estado de carácter que nos leva a escolher agir da forma adequada a cada situação, e isto só é possível por meio do concurso de uma sabedoria prática talhada pela educação.

Para se saber viver, para se ser boa pessoa, uma pessoa virtuosa, é preciso prática e experiência, mas acima de tudo bons professores. Como qualquer coisa que se aprende a fazer, na verdade. De acordo com essa concepção, será por via da iniciação numa determinada atmosfera moral e social que adquirimos a maturação que nos permite manipular conceitos e enxergar razões, nomeadamente razões morais, para as quais, de outro modo, seríamos cegos.

Este ponto fica bem ilustrado com a seguinte anedota: um pai, no aniversário de 18 anos do seu filho, dá-lhe de presente um relógio que já estava na família há várias gerações, e pede-lhe para ir ao café da rua para ver quanto valia. O filho vai, e volta dizendo que conseguia vendê-lo por 10 euros. O pai então disse-lhe que fosse à relojoaria e fizesse a mesma coisa. O filho foi, e voltou dizendo que conseguia vendê-lo lá por 300 euros, e o pai pediu-lhe para ir ao museu e mostrar lá o relógio. No museu ofereceram 450.000 euros pelo relógio. A ideia é que o valor do relógio era o mesmo, mas cada um, dependendo da sua situação e formação, foi capaz de reconhecê-lo ou não. Isto serve para desarmar o ponto cético de que o desacordo ético justifica o relativismo: o valor das ações virtuosas está lá, apenas alguns não têm capacidade de o ver.

Voltando ao ponto da sessão anterior, insistir que o relógio não tem valor em si é análogo a insistir que as flores não têm cor. Podemos defender uma posição assim (por exemplo, dizendo que o valor do relógio é uma construção social e por isso não é real, ou que a cor das flores é apenas resultado do nosso aparelho óptico e por causa disso tampouco é real), mas o ponto de McDowell e o ponto deste texto é mostrar que não precisamos de fazê-lo. Com efeito, temos razões até bastante sólidas para crer que o valor está no relógio, pelo menos tanto quanto o conceito de “relógio” está no relógio. Temos razões para manter a nossa inocência, temos razões para não duvidar.

Esta é a parte do texto em que vou tentar fazer o leitor ficar com vontade de ler a próxima e última parte desta série sobre o ceticismo moral. O facto de a razão prática não ser puramente formal permite a McDowell negar que que discorde de uma posição ética virtuosa seja irracional. Esta saída “fácil” só era permitida a Kant por ele ver a regra ética do imperativo categórico como um trilho estabelecido no mundo, que quem não seguisse estava conscientemente negligenciando. Para McDowell o nosso processo para chegar ao conhecimento da virtude não é inteiramente racional, pelo que as circunstâncias da vida de alguém podem levá-lo a ignorar as razões morais corretas.

Acusá-lo de irracionalidade seria algo como alguém ser acusado de irracionalidade por não ver razões para gostar de jazz modal, apesar destas razões existirem (e seria preciso algo semelhante a uma conversão para que estas razões entrassem no campo de percepção de um certo agente). O ponto é que estas razões só seriam capazes de mover alguém que partilhasse de início alguma concepção de uma certa maneira ética de ver a vida.

Mas se as razões morais só são razões para quem já é moral, temos um grande desafio no que toca ao último cético: o cético prático. Talvez o que mais precise de terapia no sentido não filosófico da palavra, este é o cético que coloca o seguinte problema: “E se eu não quiser saber de ser uma boa pessoa? Que razão tenho eu para ser moral?”.

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Written by Raphael Mees

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