Terapia Filosófica #2 — Existem valores no mundo?

Raphael Mees
11 min readJul 26, 2020

Apesar de muitos de nós termos valores éticos que seguimos e que consideramos verdadeiros, hoje em dia é muito difícil levar a sério qualquer tentativa de os justificar racionalmente. Temos os valores que temos, mas se um cético vier perguntar se são “objetivos”, por mais que queiramos explicar, parece que nada que possamos dizer seja suficiente para calar as dúvidas que aparecem.

Ao que me parece, tanto as pessoas normais como os filósofos se vêm forçados a escolher entre duas alternativas no que toca aos valores éticos (e estéticos também). Ou apelamos a Deus ou a algum “mundo das Ideias” à Platão, alguma espécie de realidade paralela invisível onde estes valores residem, ou temos de nos fiar à descrição do mundo que a ciência nos dá, de um mundo “desencantado”, com nada mais que matéria em movimento, acontecimentos físicos que em si não têm significado algum.

Por causa deste dilema aparente, muitos filósofos morais atuais se aproximam de uma posição de acordo com a qual o nosso pensamento moral é resultado da tendência da mente a “espalhar-se pelo mundo” (ideia que teve a sua origem com o filósofo escocês David Hume). A ideia geral desta posição seria que como somos nós que “projectamos” os valores no mundo, eles não passam de invenção nossa — em contraste com os factos da ciência, que são objetivos e estão mesmo “no mundo”. Em termos técnicos de filosofia podemos chamar a esta posição um anti-realismo naturalista.

Este tipo de posição pode parecer sentido comum se a única alternativa for o realismo platónico, e é daqui que vêm as noções de que juízos éticos são demonstrações de emoções e nada mais. É por causa deste tipo de entendimento da ética, tão comum nos tempos de hoje, como nota muito bem Alasdair McIntyre no seu excelente After Virtue, que muita gente tende a ver debates éticos como somente a “opinião” de cada um, algo que não se discute — ou pelo menos, que não se discute racionalmente. Mas agora podemos começar a sessão de terapia.

Pensar que estas são as duas únicas alternativas é perder de vista um insight essencial de Immanuel Kant: qualquer maneira de conceber o mundo e de pensar sobre ele é necessariamente uma estrutura de representações articulada conceptualmente. Um lema filosófico de Kant era que observações (“intuições”, no vocabulário técnico kantiano) sem conceitos são cegas, conceitos sem observações são vazios.

Assim, sem ver o mundo como imbuído de significado, perdemos o direito de chamá-lo mundo, quanto mais de chamá-lo “este mundo”. Quando vemos uma árvore, não vemos literalmente o que está na nossa frente: para processar a informação que nós recebemos dos sentidos, a nossa mente “codifica” as representações dentro de conceitos. Para Kant isto significava o seguinte: tudo o que nós podemos saber sobre o mundo é mediado pelo nosso ponto de vista — é impossível ver uma árvore sem ser como uma árvore, uma flor sem ser como vermelha ou amarela, etc. — , nós nunca poderemos conhecer as coisas “em si mesmas”, nunca poderemos ver as coisas de um “ponto de vista de Deus”, ou de “ponto de vista nenhum” (o que convir às preferências de cada um).

Para Kant isto significava que as coisas como nós as vemos, como elas se nos dão, são o mundo dos “fenómenos”, e as coisas em si são o mundo do “númeno”. O númeno é algo que não podemos conceber, é inefável e incompreensível para a nossa razão — só podemos ter uma representação dele sob a forma de fenómeno.

Mas o que é que isto tem a ver com os valores morais e com o cético naturalista? Bem, o ponto seria que podemos tomar uma posição mais kantiana e dizer que não são só os nossos valores que dependem da nossa maneira de ver o mundo: qualquer das nossas representações do mundo dependem disso também.

John McDowell argumenta no seu livro Mind, Value and Reality que a nossa tendência a dar preferência aos factos científicos vem de uma pressuposição — infundada — de que a ciência oferece este ponto arquimédico a partir do qual podemos alcançar a realidade em si mesma, um “point of view from nowhere”, completamente imparcial e objetivo. O problema é que já em Kant sabíamos que um ponto de vista alheio à subjetividade (que a pretenda superar) tem de ser incompreensível para um sujeito, só faz sentido se for incompreensível. O facto de a ciência ser expressa na nossa linguagem e de acordo com os nossos conceitos deixa claro que a ciência não é mais que uma forma humana de compreender o mundo (ou seja, não é uma forma divina, não é uma forma que transcende a nossa subjetividade). Seja de onde for que olhemos, qualquer que seja a concepção da realidade a que chegamos, será sempre a nossa concepção, nunca uma visão “pura”.

Não devemos negar que o que a ciência revela é especial e que ver o mundo de forma desencantada e superar a concepção medieval do mundo como um livro com mensagens e lições imbuídas (como o víamos no período Medieval) foi crucial na superação de muitas superstições e que a ciência deve estar sempre em guarda quanto a esta possibilidade. O ponto importante é que isto não significa que tudo o que pode ser dito do mundo seja dito pela ciência ou pelo método científico. A ciência procura a natureza da realidade tanto quanto ela pode ser descrita em termos absolutos, mas pensar que este é o meio para a descrição do mundo em si mesmo e para a objetividade é confundir o objetivo com o absoluto.

Para McDowell a melhor estratégia é desistir de encontrar um ponto de vista “puro” ou “imparcial”, é realmente levar a peito o ponto de Kant de que a nossa concepção do mundo é sempre “interna”. De facto, levar este ponto mais a sério do que o levou o próprio Kant, que ainda quis imaginar que existisse um “númeno” inacessível. O que Kant não pôde fazer pelas suas inocências Iluministas quanto às possibilidades da razão, devemos fazer nós agora: devemos abandonar a ideia de uma realidade “em si mesma”.

Mostrar que a ciência não é o ponto de vista pelo qual vemos a realidade em si mesma é importante na nossa terapia porque pensar isso nos leva a pensar que o que não for científico — como os valores éticos, por exemplo — não é real. Se seguimos acreditando nisso, que apenas aquilo que é descritível em termos científicos é realmente real, não é surpreendente que não conseguimos explicar a experiência ética, já que partimos de um ponto de vista de onde ela não existe.

Aqui o nosso cético imaginário pode ter uma objeção:

Mas então como explicar que os factos científicos sejam provados, atingindo um nível de consenso enorme, enquanto que os valores éticos são extremamente debatíveis e carecem de fundamentos por todos os lados? Como explicar os desacordos morais?

Aqui McDowell, outra vez, tem o trabalho de identificar qual a crença daninha. Como muitas vezes quando fazemos terapia, descobrimos que os nossos problemas só são problemas porque nós os vemos assim — como problemas. As oposições mais comuns ao realismo ético tomam-no como pretendendo mostrar a ética como uma espécie de “ciência paralela”, pretendendo atingir o mesmo grau de convergência da ciência. Contudo, este entendimento empirista naturalista da ética, como já vimos, não é justificado. A única semelhança que a ética e a ciência devem ter para que o pensamento ético possa aspirar à objetividade a que também aspira o científico é a existência de uma maneira racional de enunciar uma conclusão que o logos impele. No campo da ética, bem como no da estética, usamos argumentos em vez de provas. O importante é saber que os dois são igualmente racionais.

McDowell mantém a distinção entre valores e factos (argumentos e provas)— não é esta a pressuposição que ele pensa ser o problema. O problema não é distinguir valores de factos, mas pensar que temos razões para dar prioridade ontológica aos factos, ou seja, para pensar que os valores não fazem parte da natureza também. Em Projection and Truth in Ethics, McDowell desenvolve neste tema: dadas uma qualidade (digamos, a qualidade de “ser vermelho” ou de “ser engraçado”) e uma resposta que esta qualidade elicita num sujeito (ver vermelho e achar piada, respectivamente); alguns filósofos preferem dar prioridade explicativa à resposta sem considerar a qualidade como real, como faz o projetivismo, e outros preferem dar a prioridade explicativa à qualidade, como faz o realismo platónico.

O projetivista diz que o que há é a resposta e a qualidade é “invenção” nossa, e o platónico diz que o que há, primeiramente, é a qualidade, que causa a resposta. McDowell propõe uma “no-priority view”: a qualidade e a resposta são como dois lados da mesma moeda e não fazem sentido uma sem a outra. O projetivista quer entender a ética como a projeção de reações emocionais ao mundo, o platónico como a dedução racional de valores de um mundo para outro. Já Aristóteles dizia que “a virtude está no meio”: McDowell procura não ir tanto ao mar nem tanto à terra. As nossas reações emocionais, bem como outras contingências culturais e históricas, informam os nossos valores, mas eles são expressos em conceitos racionais.

A propensidade que temos para achar que algo é admirável, por exemplo, não vem de algo exterior ao que é admirável (como reações neuro-cerebrais perante um certo tipo de comportamento). A nossa propensidade para achar algo admirável vem do que realmente é para uma coisa ser admirável, e isto é definido a partir das nossas próprias propensidades. O conceito de admirabilidade não é um instrumento racionalmente isolado de agrupamento de itens de acordo com uma certa resposta que todos eles devem elicitar em nós — não é um conceito “fechado” do qual possamos deduzir o que conta como admirável ou não.

Ter o conceito de admirabilidade envolve ter pelo menos ideias vagas da sua posição num sistema complexo de conceitos racionalmente interligados. Saber aplicar o conceito de “admirável” não é saber aplicar uma definição, é ter uma certa sensibilidade às características de certas ações e situações, é saber identificar a sua relevância em cada caso. A maneira que temos de explicitar e desenvolver o nosso entendimento de cada um destes conceitos é o debate, a discussão racional. Tanto quanto a ciência precisa de experiências empíricas, a ética precisa de debates.

Neste momento o cético, que já é propenso a duvidar, não hesita em estranhar a proposta de McDowell:

Então o meu problema é duvidar que os valores fazem parte da natureza? Que razões tenho eu para acreditar nisso se existe desacordo moral?

E ainda continua:

Não podemos fundamentar a ética sobre fundamento nenhum, a tua proposta é circular! Para evitar a circularidade, ou fundamenta-se dedutivamente os casos (as respostas individuais) sob uma regra (a qualidade), ou fundamenta-se indutivamente a regra sob os casos.

A verdade é que isto não parece descabido. Afinal, quando justificamos uma avaliação ética, costumamos referir princípios universais que, aplicados ao caso específico, nos conferem um juízo ético. Esta é uma objeção poderosa, pelo que McDowell apela aqui e agora ao terapêuta por excelência: Ludwig Wittgenstein.

O desafio é desmascarar duas crenças daninhas:

a) a crença de que só os factos acerca dos quais não há desacordo podem ser factos da natureza; e

b) a crença de que nenhuma crença é justificada realmente se não for deduzida de um ponto externo (aqui notamos algo que muitos terapêutas notam nos seus pacientes: apesar de já se ter discutido que a visão de um ponto de vista puro através do qual deduzimos as nossas verdades não faz lá muito sentido, o cético ainda não a abandonou completamente, pensando que a ausência de desacordo na ciência em comparação com a ética faz da ciência justamente este ponto arquimédico para o conhecimento do “em si”).

Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein oferece as seguintes considerações. Imagine-se que um filósofo sem mais o que fazer mostre a um amigo a sequência matemática “2, 4, 6, 8…” e lhe peça para “seguir da mesma forma”. Nós tendemos a ver o mecanismo psicológico da formulação do comando “somar 2” como garantindo a mesma fiabilidade que os mecanismos de um relógio teriam no seguimento da regra — ou seja, no comportamento seguir da mesma forma.

O problema é que não há qualquer facto acerca de um indivíduo que garanta que ele compreendeu a regra… se a partir do número 1000 ele continuar “1004, 1008…”, isto demonstrará que o seu comportamento não estava a ser guiado pelo mecanismo psicológico como se pensava. Não se trata de um ponto cético quanto a outras mentes: para os que pensarem “eu sei que o meu comportamento não se vai desviar assim”, se os desvios de comportamento não forem mais que o comportamento de todos os outros estar em desacordo com o nosso, imagine-se que a pessoa que se desviou da regra, para além de não se convencer de que está a cometer um erro, diga de início que sabe que o seu comportamento não se vai desviar da regra.

O ponto de Wittgenstein é que seguir uma regra é algo muito mais misterioso do que podemos assumir superficialmente. Quando nos ensinam uma regra matemática, por exemplo, é comum pensarmos que as aplicações da regra existem independentemente das nossas práticas, como se os caminhos a seguir pela regra fossem trilhos já presentes no mundo. Para Wittgenstein esta ideia é pouco mais que uma ilusão reconfortante, uma tendência ao platonismo, a pensar que a matemática já existe num outro mundo qualquer independente do nosso.

McDowell pensa, inclusive, que a nossa relutância em abdicar da visão das regras como trilhos do mundo vem em grande parte de um desejo de evitar responsabilidade (o cético não sai desta sessão sem uma lição de vida!): se algo completamente externo ao mundo do logos se nos é imposto, revelado, nós não podemos ser culpados por acreditar no que acreditamos (dizer que o Iluminismo fez da Razão o novo Deus não é de todo incomum, e por alguma razão — “a culpa não é minha, eu limito-me a seguir os mandamentos!”). Aliás, McDowell pensa que a própria visão da responsabilidade de pensar como um fardo, a triste ideia de que “pensar é sofrer”, está intimamente ligada a isso.

A nossa confiança absoluta de que o comportamento de alguém não se distanciará desta forma reside na nossa partilha do que Wittgenstein chama “formas de vida” — as nossas práticas enquanto sociedade. Os habituados a ver regras como trilhos do mundo pensarão que esta perspectiva significa que não há regras e que em matemática qualquer coisa dá, e podemos inventar a matemática como quisermos. Este está longe de ser o caso. Nada do que foi dito põe dúvida na ideia de prova matemática e correção de um cálculo (no sentido de ser compulsório continuar “assim”). O ponto é que não se deve identificar erroneamente a perspectiva a partir da qual esta necessidade é discernível. O que é errado é supor que seguir uma regra seja caracterizável em analogia ao funcionamento de uma máquina, independentemente das atividades e respostas que formam a nossa prática matemática.

Considere-se um conceito cuja aplicação gere casos difíceis, nos quais há desacordo quanto a qual é a aplicação correta que ultrapassam tentativas argumentativas de resolução: os oponentes não conseguem passar de afirmações como “tu simplesmente não estás a ver” — dilemas éticos são um excelente e muito pertinente exemplo (o debate sobre a moralidade do aborto vem à mente). Alguém sob a ilusão do conceito de racionalidade como dedutibilidade cairá no falso dilema de que esta situação, ou será resolvida por um dos lados não conseguir expor os seus pensamentos corretamente, ou que o caso difícil não constitui uma aplicação possível do conceito em mãos, e que cabe ao agente inventar uma aplicação que será tida por correta.

A ilusão — a crença daninha — é pensar que os “casos fáceis” poderiam ser dedutivamente provados como aplicações corretas — que a noção de uma aplicação correta não depende das nossas formas de vida. Temos, portanto, de abdicar da visão de que o pensamento filosófico possa ser contemplado de um ponto de vista externo às nossas formas de vida. São as nossas práticas que conferem objetividade, não o mundo. Isto vale tanto para a matemática como para a ética: são ambos exercícios da razão e não é por um ter um método dedutivo e o outro não que isto deixa de ser o caso.

Penso que esta maneira de entender a nossa relação com o mundo dá mais espaço à objetividade dos valores morais. Mas então como é que os podemos conhecer? Se os conhecemos, como fica a situação do desacordo moral? Haverá sempre alguém certo e alguém errado? Cenas do próximo capítulo.

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