Sol de Inverno
APRESENTAÇÃO DO CENÁRIO

Windslow era uma vila pequena, assim como os seus habitantes. A cidade só começou a existir por causa do campo bem iluminado e de terra fértil que fica ao seu lado. Para poder cultivá-lo, os habitantes agregaram-se todos e construíram as suas casas no lado onde o Sol não batia. Construíram também o castelo do duque, que lá vivia, num morro que ficava de costas para o Sol durante todo o seu percurso. A cidade estava praticamente perpétuamente assombrada (no sentido de ter sombra — e não Sol). No topo do morro melancólico brilhavam alguns pessegueiros, doce esperança para quem está na sombra.
Para se proteger de possíveis invasões, o duque tomou por medida acertada construir uma torre na fronteira não protegida pelo morro, com funcionários que se responsabilizassem de soar um gongo para anunciar o estado de emergência quando se estivesse perante uma invasão. Quer dizer, na verdade o duque não pensou, exatamente, mas a torre parecera sempre estar lá, e parecia-lhe muito bem também.
Hoje em dia, esta aberração cósmica a que uns pobres Zés-Ninguéns chamaram casa já não existe. O antigo duque de Windslow, agora velho e vivendo numa outra rua qualquer, com prédios todos uns iguais aos outros, começou a contar uma história da sua juventude aos seus curiosos netos.
‘Mas avô, tu nunca vias o Sol?’
‘Eu via o Sol a bater mesmo à frente da cidade, mas nunca na cidade’
‘A sério! E não eras triste?’
‘Não, nada disso. Mas havia quem notasse uma estranha correlação entre os nossos habitantes e alguma apatia e falta de vontade. Mais do que tristes, o escuro fazia-nos medrosos. Também tens medo no escuro, que eu sei. De qualquer forma, a cidade -’
‘Já chega da cidade! Conta logo a história!’
APRESENTAÇÃO DO HERÓI
‘O duque de Windslow era um homem muito condizente com a cidade em que vivia, é por isso que quis contar. Era do tipo que ficava fascinado com o brilho, mas até gostava do conforto da sombra.
Era um rapaz impecável, sem dúvida, e penso que ninguém tinha reclamações dele que pudessem fazer. Era perfeitamente inócuo e inofensivo, ao ponto de ser indiferente em muitas situações, apesar de ser mesmo assim um homem disciplinado e determinado, que não hesitaria em fazer os mais desmedidos sacrifícios para conseguir realizar uma das fantasias que criasse para ocupar a sua vida, que caso contrário seria perfeitamente estéril e aborrecida. O seu outro passatempo para preencher o vazio ocioso da sua existência, hábito esse muito comentado e reprovado pelo povo de Windslow, era o ópio.
Estava numa festa fora da sua cidade quando viu pela primeira vez a duquesa Brigit Beauliet, uma bela rapariga da parte francesa da corte Suíça. Eles deram-se bem e ele convidou-a a passar umas semanas como hóspede na sua cidade — os ricos naquela época não tinham mais que fazer.
De qualquer das formas, ela disse que sim.
A PRIMEIRA MANHÃ SEM NEVOEIRO
‘Eu sei que pode ser difícil habituar-se à sombra. Pode estar muito calor, mas cá, à sombra, faz vento e é sempre mais frio. Espero que não te incomode’
‘Lá na Suíça também há muitas montanhas. Eu também não tenho muita luz na minha cidade, e é ainda mais frio!’
O duque não sabia o que mais haveria de dizer, e Brigit parecia ver-se na mesma situação. Era noite e eles passeavam pelas ruas da cidade, o que se provava bastante custoso. O duque, que não estava habituado a caminhar pela cidade, que tinha ruas muito íngremes, já ofegava e sentia o suor nas costas.
Eram uma dupla fofa de se ver: ele com o seu fato preto calças pretas e sapato preto, vestimenta mais típica de Windslow, ela toda de branco radiante no escuro, como o yin num yang.
No dia seguinte ao da chegada de Brigit, como que por um milagre, o Sol iluminou a cidade. Logo pela manhã, bateu de leve, penetrando as janelas das casas e acordando a todos, incluindo Fred, o funcionário do turno do dia da torre de Windslow.
Ao abrir as persianas e dar de cara com o Sol, Fred sentiu os olhos a queimarem. Com eles todos vermelhos, chega para o trabalho no dia que ia mudar a sua vida.
‘Nada de especial hoje. Vêm aí uns comerciantes de tarde, mas de resto estou tranquilo’, pensou, como que a tentar-se assegurar de que o pouco sono não lhe traria problemas. Apesar da sua natureza simples e despreocupada, Fred não conseguia tirar de trás da orelha a pulga irritante que era acordar com a luz do Sol. ‘Isto cheira-me a caos e ovos podres no inferno…’, pensou.
Para passar o tempo enquanto ninguém vinha para a cidade, o que preenchia cerca de nove horas e quarenta e cinco minutos das dez que trabalhava todos os dias, Fred distraía-se a assistir o esforço extremo que as pessoas faziam para caminhar pelas ruas íngremes da vila do morro escuro. De alguma forma, pensava ser esta a sua vocação. Tinha uma personalidade silenciosa e não fazia questão de ser visto ou que os outros se interessassem por ele, mas tomava extremo interesse na vida dos outros: era o seu maior prazer analisá-las e pensar no que as suas vidas poderiam ser, quais seriam os seus problemas e pensamentos. Era feliz assim, um cabeça nas nuvens.
ANSIEDADE: A SEMENTE DO CAOS
Quando deparou-se com uma figura branca a caminhar (esta seria Brigit), contudo, como que por um reflexo e sem pensar, Fred começou a soar o gongo do estado de emergência.
Note-se que apesar de preto ser a vestimenta tradicional de Windslow, as pessoas não eram maluquinhas e muito menos obrigadas a usar todos a mesma cor. Existia alguma variedade de tons: havia quem usasse azul escuro ou verde lodo, ou os mais aventureiros que em dias de confiança especial experimentavam sair de cinzento. Não obstante a diversidade, nenhuma alma viva tinha a audácia de usar branco. Por mais infantil que possa aparecer, o ignorante Fred, já perturbado pelo Sol e abalado pelo sono interrompido, assumiu que só poderia se tratar de um invasor. O seu dever, portanto, era avisar o povo para que se protegessem.
POSSO ENTRAR?
A esta altura o Sol já estava mais alto e extremamente quente. Com efeito, não se imaginava que pudesse ficar tão quente antes. Pela primeira vez, para sair com Brigit, o duque foi só de camisa, sem o casaco do fato, como que para comemorar o inesperado bom tempo e o Sol digno de verão numa vila de inverno eterno.
Foi buscá-la ao seu hotel. Bateu na porta e ela abriu-se sem que o nosso herói visse quem o tinha feito. Ficou indeciso se entrava ou não e manteve-se parado com um pé dentro e um pé fora.
‘Escusas de entrar, eu já estou pronta!’ disse a radiante Brigit, saindo da casa de banho, onde estava escondida.
PASSEIOS DE FANTASMA
O casal foi para um dos poucos sítios ainda abrigado por sombra, conversar para debaixo do abrigo das árvores do Parque da Cidade. Apesar da sombra, mesmo no parque sentia-se o efeito do Sol, e flores cor de rosa nasciam do relvado como peixes a saltarem num rio.
Estava a tremer de frio e de nervoso, o nosso duque. Frio porque não tinha trazido o casaco, nervoso porque era um medricas e não se conseguia habituar ao Sol. Também estava com os olhos vermelhos, como todos os que viviam na cidade.
Foi a conversar que começaram a ouvir o tumulto e souberam do estado de emergência. A princesa pareceu mais preocupada que o duque, que estava habituado a reagir sem reação: ‘Nós podemos continuar aqui à sombra, não deve ser nada de especial. E olha que dia lindo!’
‘Não tens mais nada para me mostrar?’ — com isto a duquesa levantou-se, apertou as botas e começou a caminhar. Parecia entediada com a companhia do nosso doce protagonista, que não percebia que a situação tinha de acabar no Sol, inevitavelmente. Os dias de sombra tinham-se acabado.
OLHOS EM CHAMAS
Para reconhecer quem era habitante da cidade e quem poderia ser o invasor, os habitantes da cidade, que não faziam ideia que o alarme tinha sido soado porque alguém estava de branco, começaram a inspeccionar os olhos de todos: os que estivessem vermelhos com o Sol seriam deduzidos cidadãos. A este ponto o Sol já chegava a queimar. A madeira das casas não estava preparada para suportar esta temperatura, e eram observadas as primeiras casas a pegarem fogo por dentro.
‘Parece que vou ter de ir embora. Eu também sou Sol de inverno’, disse Brigit, percebendo o que se passava e a gravidade que a situação podia tomar; e deu-lhe um abraço. Neste momento o Sol brilhou mais forte e queimou mais intensamente e as chamas que incendiavam a cidade subiram à altura dos joelhos. Sem saber bem o que responder e já atordoado pelo Sol, mas compreendendo de forma turva as implicações do que tinha ouvido, o melhor que o duque conseguiu dizer foi:
‘O inimigo está comigo, mas não me confundas com ele! A verdade é outra, eu prometo!’
Esta foi a única vez que o duque sentiu calor por dentro, o calor de que tanto precisava e que lhe era tão estranho. Olhou-a nos olhos brancos e sabia que era verdade. Viu-a partir, e o fogo parecia acompanhá-la, queimando as flores no chão pelo seu caminho.
O NEVOEIRO PRETO DA CIDADE-CARVÃO
Nunca suou tanto como na volta para o seu castelo. Não sabia mais o que fazer a não ser sentar-se no seu jardim. O Sol agora iluminava a piscina de pedra — nos tempos de sombra a piscina tinha sido completamente coberta com lama e relvas que crescem na água, por causa da falta de iluminação que recebia.
Agora as relvas queimavam, fazendo uma nuvem efervescente de vapor de água soltar-se, de onde saiu o fantasma, que decidiu sentar-se no mesmo banco que o duque, bem ao seu lado, de frente para a piscina.
Tudo ardia. Os olhos, as plantas, o chão, o castelo, o tempo, o coração do duque. Sentado ao Sol infernal, sentia a pele a arder, e não pensava em nada a não ser pagar a sua penitência.
No banco ao lado sentou-se um dos seus funcionários, com a sua mulher, e queixou-se do calor, que não parecia incomodar de todo a sua mulher. Cada um tem o seu inferno, pensou o duque. Que tal?’
‘Muito fixe, gostei’.