Metafísica #1 — Sobre o que existe (e não existe), para Quine

Raphael Mees
8 min readApr 25, 2020

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Para muitas pessoas, um dos maiores choques da infância é descobrir que o Pai Natal “não existe”. Para muitas outras, com um espírito menos fantasioso e mais científico, esta informação, quando dada pelos pais, como quem esperaria uma grande surpresa, não vem como revelação nenhuma: é claro que esse velho barbudo que anda num trenó com renas voadoras a distribuir presentes pelo mundo inteiro em um só dia é só uma invenção, e quem nos dá os presentes são os nossos pais. Muitos filósofos, contudo, com uma maior propensidade para a reflexão sobre questões inúteis do que para a solução de problemas concretos e verificáveis empiricamente, viram-se muito complicados com questões dessas.

Desde o início da civilização ocidental como a temos, na Grécia Antiga, o problema da existência tem sido alvo de inúmeras discussões, e continua a sê-lo até hoje. Platão, no seu diálogo O Sofista, põe a seguinte questão: como é possível afirmar a não existência de qualquer entidade sem contraditoriedade, já que “O Pai Natal é não existente” afirma que “O Pai Natal é”?

Avançando cerca de 2300 anos no tempo, em 1953, W. V. O. Quine publica On What There Is, artigo onde se ocupa com explicitar o que ele considera serem os compromissos ontológicos do discurso filosófico. Ou seja, Quine quer mostrar o que a nossa linguagem nos obriga a afirmar que existe de um ponto de vista lógico-formal.

Quine reduz a sua ontologia (área que estuda a existência) à sua epistemologia (área que estuda o conhecimento): o que podemos dizer que existe é aquilo que podemos dizer que sabemos que existe; e o ponto de partida da epistemologia de Quine é a fenomenologia — ou seja, o ponto de partida da sua investigação é o nosso fluxo de experiências sensoriais, os “fenómenos” como se dão para o sujeito, que são para ele a única coisa de existência garantida(note-se: a minha experiência do sabor de uma maçã apenas garante a existência da experiência, não a de uma “maçã”). Devemos, portanto, procurar o sistema ontológico mais simples que nos permita dar conta dos nossos pedaços espalhados de experiência.

Barba de Platão (ou charada platónica do não-ser) é o nome que Quine dá à tese exposta n’O Sofista. Platão põe o problema (ao qual ele próprio procura oferecer uma solução no seu diálogo) de que qualquer palavra com significado deva apontar a existência de alguma entidade. Se esta entidade, diz Quine, for uma ideia (mental) de Pai Natal, por exemplo, então o problema resolve-se facilmente: não é de uma ideia que se fala quando se diz que o Pai Natal não existe — o Pai Natal e a ideia de Pai Natal são coisas distintas, bem como o Parthenon e a ideia de Parthenon. Neste caso o desacordo não seria mais que terminológico no que respeita à extensão do conceito de existência.

Se, por outro lado, esta entidade for um possível não atualizado — o que significa que Pégaso é mas não existe (identificando existência com atualidade) — entramos em questões modais mais complexas, às quais Quine faz um apelo à Bertrand Russell, filósofo britânico do século XX, para resolver. O que Russell (e Quine com ele) defende é que descrições definidas (e mesmo “nomes próprios”) não supõem referência objetiva. A frase “a redonda cúpula quadrada de Berkeley College é verde”, por exemplo, põe o seguinte problema: se for verdadeira, então existe uma cúpula redonda e quadrada em Berkeley College, que é verde; se for falsa, então existe uma cúpula redonda e quadrada em Berkeley College, que não é verde. Ambas parecem, contudo, obviamente falsas, não por a cúpula não ser verde, mas por não poder haver um objeto redondo e quadrado ao mesmo tempo.

Traduzindo a frase em “existe algo que é redondo e é quadrado e é uma cúpula no Berkeley College e é verde; e nada mais é redondo e quadrado e uma cúpula no Berkeley College”, vemos como a necessidade de referência objetiva não está realmente presente em “descrições definidas” como “a redonda cúpula quadrada de Berkeley”. Com a explicitação lógica, fica claro que o que supõe referência objetiva são o que os lógicos chamam “variáveis quantificacionais” — palavras como “algo”, “nada” e “tudo”. Estas afirmam ou negam a existência de entidades de forma geral e ambígua, de forma que não pressupõem a existência de nada em particular para terem sentido. Assim, “a redonda cúpula quadrada de Berkeley College não é” quer dizer, de forma logicamente extensa, “ou cada coisa falha em ser uma cúpula em Berkeley College e ser redonda e ser quadrada ou existe mais de uma coisa que seja uma cúpula em Berkeley College e seja redonda e seja quadrada”.

A teoria de Russell vai mais longe e chega a afirmar que mesmo nomes próprios não pressupõem referência, devendo eles também, em nome da clareza lógica, serem traduzidos em descrições definidas: “Pai Natal” = “O velho barbudo que vive no Polo Norte” = “a coisa que é-Pai-Natal” = “a coisa que pai-nataliza” (este verbo é criado no caso extremo de que, mesmo não se conhecendo nada do Pai Natal a não ser que tem este nome, ou que é o Pai Natal, ainda se possa traduzir um nome numa descrição). Assim, finalmente, podemos nos abster do compromisso ontológico com a existência do Pai Natal com a afirmação “O Pai Natal não é”, do mesmo modo que podemos assumi-lo com a afirmação “O Pai Natal é”.

Em Russell a sua teoria das descrições definidas está intimamente ligada com a sua epistemologia, a teoria do atomismo lógico: o mundo é composto por unidades simples e irredutíveis, que no nosso entendimento são os “dados dos sentidos”. Por causa disso, Russell pensava que todas as afirmações, para fazerem sentido, tinham de poder ser reduzidas, na sua essência, a frases sobre dados dos sentidos. Em Quine esta ligação com a epistemologia está igualmente presente, mas um reducionismo tão ingénuo já não lhe é disponível nestes tempos pós-positivismo-lógico. A sua epistemologia é “naturalizada”: não passa de um capítulo da psicologia. Cético quanto à possibilidade de uma reconstrução como a de Russell ou a dos positivistas lógicos, Quine propõe uma epistemologia que parte da estimulação do nosso aparato sensorial e faz um trabalho a posteriori e descritivo (em vez de, como tradicionalmente acontecia, a priori e normativo) da maneira como as nossas crenças se organizam.

Dado um cientificismo tão profundo, a posição de Quine na questão dos universais — se atributos, relações, classes, números e funções existem — não é um mistério. É claro que não se poderá dizer que “a brancura” (enquanto uma entidade de natureza qualquer) existe por existirem coisas que dizemos serem brancas, ou mesmo que o atributo de ser-Pai-Natal existe por adotarmos o predicado “pai-natalizar”: ser o nome de alguma coisa é uma característica muito mais específica que ter sentido/significado — e como já foi visto, as únicas expressões linguísticas permitidas a pressupor referência são os nomes.

Nem mesmo os significados, como entidades mentais correspondentes aos termos, são de postulação necessária: se analisarmos a mente em termos funcionalistas/behavioristas, o que torna um termo significativo é o uso de um termo e a sua correspondência com um certo comportamento — e não com uma entidade mental. Isto leva Quine a ter de aceitar mais uma posição um tanto contra-intuitiva: se para um termo ser significativo tem de corresponder a um comportamento, então números, junto com todos os outros termos matemáticos, não são significativos — sem que por causa disso tenham de ser considerados inúteis.

No seu Ontological Relativity, Quine faz uma transição da sua famosa teoria da indeterminação da tradução à ontologia. A indeterminação da tradução é explicada com o seguinte exemplo: imagine-se uma tribo que fala uma língua completamente diferente de qualquer uma que conheçamos e para a qual não há falantes bilíngues desta língua e outra que possam efetuar uma tradução. Se alguém, a tentar aprender a língua, reparar que sempre que passa um coelho os falantes pronunciam a expressão “gavagai”, Quine argumenta que este facto por si não nos permite traduzir a expressão: pode tanto significar “coelho” ou “cauda de coelho”, por exemplo.

“Coelho” e “cauda de coelho” são extensionalmente equivalentes: apontam para a mesma porção do mundo espácio-temporal; diferindo apenas no que diz respeito ao seu princípio de individuação, ou seja, eles representam maneiras diferentes de cortar e classificar as coisas no mundo (aqui já se vê a relativização de um termo que na filosofia escolástica era usado dentro de uma estrutura fixa de géneros e espécies). É tentador pensar, então, que se pudéssemos descobrir qual princípio de individuação o falante emprega, talvez com perguntas como “Esse gavagai é igual a esse?” e “Existe um gavagai ou dois?”, poderíamos dar uma tradução única e determinada para ‘gavagai’.

Para Quine o problema é mais profundo que isso: “é igual a esse” pode ser interpretado, pelo falante, que funciona num sistema completamente diferente do nosso, tanto quanto se sabe, como “pertence com”. Com isso a indeterminação se mantém e, pior ainda, se alastra também à nossa própria linguagem: começam a surgir dúvidas quanto a o que nós queremos dizer quando dizemos “coelho”.

A transição dessa indeterminação da tradução para a relatividade ontológica é suave e contínua: se não há diferença entre referir-se a coelhos ou a cauda de um coelho além de um sistema de contagem e classificação, que diferença material poderia haver entre ser um coelho ou a cauda de um coelho?

A este ponto, Quine toma proveito da teoria da relatividade de Einstein. Imagine-se que eu e o leitor estamos numa sala a 15 metros de distância, um de frente para o outro, e entre nós, estão duas pessoas lado a lado. No meu quadro de referência, a pessoa A está à direita da pessoa B, mas no do leitor a pessoa A está à esquerda da pessoa B. A totalidade da evidência é consistente com as duas respostas. Na mesma linha, dada uma certa maneira de classificar e contar e determinadas partículas lógicas e gramaticais, podemos falar de coelhos ou suas partes ou sua existência em um determinado momento e ao longo do tempo. Dadas essas coisas. Não faz sentido perguntar o que realmente existe — se realmente existem coelhos ou caudas de coelho — assim como não faria sentido perguntar se a pessoa A está realmente à esquerda ou à direita da pessoa B.

É por isso que Quine diz que não há muito sentido em falar sobre o que são os objetos de uma teoria. Em vez disso, devemos nos concentrar nas maneiras pelas quais um tipo de conversa sobre objetos é interpretável em termos de outro tipo de conversa sobre objetos. O que é interessante são as maneiras equivalentes — mutuamente interpretáveis ​​- de falar sobre o mundo, nenhuma delas em particular, pois nenhuma dessas maneiras é privilegiada em nenhum sentido significativo.

Linguisticamente (ou melhor, logicamente), ser assumido como uma entidade é nada mais que ser reconhecido como um valor de uma variável. “Alguns cães são brancos” implica que existam certas coisas que são ao mesmo tempo cães e brancos, mas não que existam coisas como brancura ou caninidade. Postulamos objetos físicos por ajudarem a explicar o nosso fluxo de experiências sensoriais, da mesma forma que números irracionais são postulados para simplificar as leis da aritmética. Tanto objetos físicos (para uma concepção fenomenalista) como números irracionais podem ser vistos antes como mitos convenientes (em oposição à verdade literal) para a nossa concepção sistemática do que chamamos realidade.

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