O grupo

Raphael Mees
4 min readJun 30, 2020

Era uma vez um grupo de adolescentes que tinham a mania que eram melhores que os outros adolescentes. Este grupo teve vários nomes ao longo da sua história, mas como não quero deixar ninguém com vontade de continuar o texto para descobrir “de onde será que veio este nome tão curioso? que tipo de jovens será este?”, vou simplesmente dizer “o grupo”, e os leitores já saberão de que grupo estou a falar. E se não souberem, paciência.

Os membros iniciais do grupo viviam todos na mesma cidade, e num verão há alguns anos começaram a reunir-se com alguma frequência para se divertirem juntos a fumar paiva. No entanto, o mais importante para entender a essência deste grupo de amigos está num mundo muito longe dos factos históricos e biográficos dos seus membros. Existe uma razão maior que permitiu que as suas reuniões continuassem depois daquele verão e muito além disso, que uniu os membros como partes de um todo, como várias palavras numa frase. Algo que começou como uma brincadeira foi na verdade a razão pela qual tudo aconteceu, literalmente.

“Não consigo compreender este momento…” — como a história é verídica, usarei codinomes para preservar a identidade dos personagens. Aqui quem fala é o Corno Neutro.

“Parece que estou a viver um gif muito comprido, tipo um gif de 70 anos”, disse o Farrapo. Note-se: quando dois cegos fumam as próprias bengalas, ficam ainda mais perdidos.

“Imagina que toda a nossa vida até agora tinha sido só a nossa backstory e que a nossa história só começava agora…”

“Literalmente agora… o começo da nossa história era imaginar que este era o começo da nossa história…”

“O começo da nossa história é nos darmos conta de que estamos numa história?”

“Não, nós não podemos saber, isso não tem piada nenhuma e é muito cliché. O começo da história é só nós a discutirmos a possibilidade de a nossa história começar neste preciso momento, …”

“É o gif a voltar ao início…”

“É meta-narrativo.”

“Não é um mau início de história…”

É um péssimo início, e daqui para frente vamos de péssimo a pior. Algumas das contribuições do diálogo anterior foram do Totozinho, outras do Pernas. Não importa muito quem disse o quê, as palavras ganham o sentido dentro da frase. Importa é que foi dito.

Todas as noites de sexta-feira eles passeavam pela cidade, e todas as noites de sexta-feira eles voltavam, cada um para a sua casa, sem falha, com alguma história inacreditável, com alguma moral do dia, ou com frio e dor de cabeça. Sempre havia algum maluco que os abordava e começava a falar coisas sem sentido, que estranhamente pareciam fazer mais sentido do que deviam muitas das vezes. Mas a maioria das vezes não.

Para estes jovens, que ainda não tinham dado de cara com a estranheza do mundo e agora a consumiam com tanta avidez como consumiam erva, era difícil não pensar que a vida era uma piada. Uma daquelas que é de tanto mau gosto, tão péssima, tão imprevisivelmente previsível, e igualmente previsivelmente imprevisível, que até era hilariante.

“A minha vida é uma piada sem punchline, eu só me rio porque a graça nunca chega…”

“É meta…”

“Sim, é muito meta.”

“É uma regra que confirma a exceção… sempre que uma coisa engraçada acontece, sei que estou numa história.”

“As piadas não são engraçadas à segunda vez, mas começam a ser outra vez à décima primeira… sempre que uma história se repete, sei que estou numa piada.”

“As coisas mais meta são as mais absurdas e autênticas, precisamente porque são as que mais se repetem… as coisas banais são uma história que só se vive uma vez.”

“Então meta é viver a mesma história de várias formas diferentes? Não faço ideia do que isso quer dizer, caralho.”

Meta sou eu, que escrevo a minha mesma história depois de já a ter escrito várias vezes. Mas filosofias confusas à parte, nota-se que a verdadeira droga destes jovens era a vida — o resto era droga só por extensão. O que eles queriam era entender a própria história, entender por que é que tinha de ser uma história e não outra coisa, por que razão a sua existência se reduzia a umas meras palavras — algumas das quais o leitor agora lê (nós lemos sempre algumas palavras ao mesmo tempo, é raro lermos uma palavra de cada vez — por isso “algumas”).

Só que as histórias normalmente têm começo meio e fim, e os meios são ligados entre si, e um dos meios está ligado ao fim, outro ao começo. Igualzinho a uma frase. A vida não pode ser uma colagem de palavras aleatórias que continua e se repete enquanto houver energia para continuar a reproduzir o gif, justamente porque uma história não é assim, porque uma história é uma frase. “O grupo é meta”.

A SER CONTINUADO…

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Raphael Mees
Raphael Mees

Written by Raphael Mees

Filosofia, crónicas, contos e mais qualquer coisa que me lembrar de escrever

No responses yet

Write a response