O caso contra a coerência
Estou muito do contra hoje, a coerência nem é assim tão má. Mas já que se começou, termine-se.
O conhecimento total e absoluto pode muito bem ser atingido, mas sem dúvida alguma não o será no meu tempo de vida (talvez o seja no meu tempo de morte). É deste ponto de vista, que aos olhos de uns pode ser otimista, aos de outros pessimista, que faço este caso contra a coerência, nomeadamente a de tipo filosófico (quanto à gramatical, por exemplo, acho muito bem).
Se é verdade que em licenciaturas de filosofia aprende-se a história da filosofia e não filosofia em si, aprendamos com ela, pelo menos: remontando à época medieval, da filosofia escolástica, dos grandes sistemas filosóficos com conceitos para tudo (como se o conceito de “tudo” não bastasse [piada]), que duraram, ou pelo menos deveriam ter durado, até Kant (quem me dera não ter tido de estudar o idealismo alemão e perder tempo a pensar se este é mais complicado do que estúpido ou o contrário), vemos que esta fase da filosofia já acabou, e por uma razão.
A filosofia, como a maioria das coisas, é um produto do seu tempo. Assim, é hoje mais especializada do que nunca: não temos especialistas em epistemologia, antes temos especialistas no capítulo em que Hume fala de milagres. Esta fragmentação das especialidades tem sido ótima para a sociedade. Por extensão, parece razoável pensar que tem o mesmo efeito para a filosofia — e não estou a escrever à toa, isto tem relação com a coerência. A relação pode não parecer muito óbvia, então perdoem a falta de brevidade, que vem, na verdade, mais da minha tendência de escrever à toa do que da complexidade do tema.
De qualquer das formas, a relação é a seguinte: se não temos esperanças de conhecer tudo, como tinham os escolásticos, com os seus sistemas universais, pelo menos estatisticamente, é mais provável estarmos mais próximos da verdade falando apenas de um tópico muito específico (ainda mais se a discussão acerca deste torna-se mais densa, como tem se tornado — apesar da densidade não ter relevância para o caso levantado) do que falarmos não de um, mas de todos os tópicos ao mesmo tempo e estarmos simultaneamente certos acerca deles todos.
Não tendo a possibilidade de saber quais das nossas opiniões é a que está errada, mas sabendo que o mais provável é que pelo menos algumas delas estejam, não devemos abdicar de uma por não ser compatível com outra, antes pelo contrário: mais vale atirar-nos aos assuntos e criarmos o maior número de teses e instrumentos conceptuais para as gerações futuras usarem e descobrirem os erros nas nossas duas teses incoerentes entre si, que muito provavelmente, estão ambas erradas. Estando ambas erradas, que se acredite nas duas, se não se encontrar nelas erro algum. Podia argumentar mais o meu ponto e terminar isto, mas isto de se começar tudo o que se termina parece-me muito errado agora que estou a ficar com sono.