Moscas: O apego à podridão digno do vilão
A mosca é um animal interessante. É das mais desprezíveis e nojentas das criaturas: não hesitamos em matá-las, simplesmente porque a sua mera presença é um incómodo tamanho que justifica o esforço de dar atenção a algo tão baixo. E no entanto, muitas vezes dizemos “quem me dera ser uma mosca agora”. Concedamo-nos este desejo agora, então, e imaginemos como seria tal experiência: como seria ser uma mosca, a voar pelos céus de uma grande metrópole, à noite, por cima dos prédios. Imaginemos como seria ter toda aquela vista.
Mas os ventos das altitudes são muito fortes e rarefeitos para uma mosca como nós. Caiamos então do céu para os ventos mais quentes. Caiamos para os ventos que estão afogados no mais profundo cheiro a esgoto, degradação e pecado, onde os bêbados vagueiam pela noite a oferecer-nos perigo.
A mosca é um animal interessante. Repito porque sou mau autor, e por isso, assim como a mosca, sou atraído pelas coisas que são como eu: do mais baixo nível, absolutamente patéticas. É um inseto consciente da sua insignificância, e por causa desta consciência, não tenta redimir-se na proximidade das coisas grandes, dos ventos fortes e desafiadores, preferindo em vez disso o mais baixo dos baixos, onde se sente em casa. É por causa desta consciência, por saber que é insignificante, por saber que não importa a nada e a ninguém, que a mosca junta-se ao que há de pior e de mais perigoso, como que de propósito, como que a tentar acabar o mais rápido possível com algo tão mau.
Age desta forma porque tem algo em comum com todos nós (e peço desculpa aqui aos cínicos de espírito, mas repito: todos nós). Este algo em comum é mais manifesto num género humano específico. Existe um tipo de pessoa que torna o meu ponto mais facil de fazer. Como mau autor que sou, nao reste dúvidas: se há um caminho mais fácil, será este o meu caminho.
Então, para elucidar a nossa semelhança com os insectos (não querendo, de forma alguma, ofender o orgulho da grande personalidade que o leitor, sem dúvida alguma, sei que é — apenas examino uma parte da natureza tão misteriosa que a nossa espécie por vezes mostra) focarei agora a minha atenção neste género: o do Vilão.
Imaginemos então que a mosca, numa das suas viagens pela decrépita cidade que tem como casa, entra no mais sujo e deprimente dos bares abertos a esta hora da noite. Lá, entre as talvez doze pobres almas, completamente embriagadas, encontra, no fundo, sentado num banquinho num canto sombrio, rodeado de copos e garrafas vazias, o maior vilão da cidade.
Vale a pena clarificar o que é um vilão, antecipando preconceitos contra um tão tristemente nobre e desesperançado género da raça humana. Perguntas do tipo “O que é que ele fez? Quem matou? Qual será o seu grande plano de destruição do mundo?” revelam apenas ignorância (não que esteja a ser questionada a majestosa e nobilíssima cultura do leitor, que aposto ser de grande calibre e finíssimo requinte): um vilão, por definição, é todo aquele que tem um fardo na vida que seja maior do que as capacidades que este desgraçado tem de o carregar, e por isso, torna-se mau.
Ser mau não significa, contudo, mau para os outros. Admito, sim, que não faz sentido falar de mal a não ser quando infligido a alguém, e que mal enquanto Mal, a abstração, não existe realmente, não passa de uma classe, um conceito. Mas esse alguém a quem o mal é infligido pode não ser os outros.
Com efeito, contradizendo tal ideia, o maior vilão de tão decrépita cidade (e por causa disso, de modo algum em falta de vilões) nunca fez mal sequer a uma mosca. Comporta-se, na verdade, tal e qual uma mosca; e, reconhecendo os vícios do seu carácter, inflige todo o mal que consegue a si próprio: sente-se acolhido pela podridão da mesma forma que a mosca, sabe que é lá o seu lugar, e tenta, sem gerar grandes incómodos aos mais nobres, acabar com a sua aberrante existência em silêncio, pouco a pouco, a sofrer todos os dias muito menos do que merece por ser tão baixo.
E é por isso que digo que são eles, os vilões, as moscas, que são verdadeiramente nobres, verdadeiramente dignos no sentido mais puro da palavra. A característica que todos têm, de que falei num parágrafo anterior, é a que os torna assim. De facto, todos a têm, mas as condições do vilão tornam nele esta tendência muito mais elevada, elevando também o seu espírito: esta é o amor ao Bem e ao Bom. O comportamento auto destrutivo vem do reconhecimento do mau que neles existe, e num ato do mais puro sacrifício e bondade, procuram suprimir a própria vida para eliminar algo de tão mau que exista no mundo.
Agora, como mau escritor que sou, não sei como terminar este texto, então parece-me de mau tom terminá-lo com uma frase que resume a conclusão aqui obtida de forma nada poética e ainda menos verdadeira: ‘Os santos não passam dos maiores pecadores, que, no entanto, são conscientes do seu vício e sentem a maior culpa por eles’.