Há livre arbítrio?
Cada vez mais, a visão de que nós não somos realmente livres ganha popularidade entre aqueles que pensam no assunto. Os argumentos parecem simplesmente demasiado fortes. Como ignorar, afinal, o problema do determinismo? Os que aceitam o naturalismo mecanicista entendem o mundo como governado por leis invioláveis como as da matemática: 2+2 é sempre igual a 4. E mesmo negando esta cosmologia, a ideia de que a nossa liberdade consiste em não sermos determinados parece ser equivalente a dizer que ser livre é agir aleatoriamente. Grande problema.
Mas eu vou argumentar que há livre arbítrio. Quer dizer, mais ou menos. Talvez muitos fiquem insatisfeitos com as respostas que eu vou dar, já que todo o meu processo de raciocínio se baseia em reformular as perguntas e as definições dentro das quais nós tratamos do assunto. Seja como for, vamos a isto.
O problema do livre arbítrio atualmente é dominado por duas posições: o compatibilismo e o incompatibilismo. A primeira defende que é possível que uma ação seja determinada e livre. A segunda defende que se uma ação é determinada, então não é livre. Ser determinada significa ser previsível sem margem de erro a partir do passado remoto e as leis da natureza: tendo a queda do primeiro dominó e a forma como eles interagem, sabemos quais dominós vão cair — e quando.
Aqui, surge a pergunta: qual será a concepção de “ação” pressuposta nestas definições? Ora, algo como “um evento que acontece com a intenção de um agente”. A definição não precisa de ser muito rigorosa, para já. Basta sabermos que uma ação é parte de uma categoria maior, é um tipo de evento. Mas então o que é um evento? Aqui começamos a chegar à raiz do problema, ao meu ver. Podemos dizer que um evento é algo como um intervalo de tempo e espaço. Muito bem. Mas este intervalo será mensurável? Cada segundo é um evento? Cada minuto? Como separamos um evento do evento seguinte? Como dizemos que algo é um evento e não dois distintos?
Parece que a categoria de evento, dentro da qual estão as ações, que são aquilo que nos interessa saber se são livres ou não, é na verdade bastante maleável e difícil de definir com muito rigor. Por que será? A minha resposta é a seguinte: aquilo que nos permite conferir unidade (e portanto, significado) à realidade são narrativas. O que faz de um evento, um evento, é o contexto dentro do qual ele ocorre. Nenhum evento vai sozinho ao tribunal da liberdade. Qualquer evento, para ter sentido de todo, pressupõe uma quantidade imensa de conhecimento prévio de uma certa narrativa que nos permite direcionar a nossa atenção a certas coisas em vez de outras.
Não são só as ações, portanto, que dependem de intenções: eventos também. Isto porque atentar (direcionar a atenção) é uma ação. Isto levanta uma série de questões que vou abordar melhor mais à frente. Agora vejamos o que podemos dizer sobre o determinismo.
Se um evento é sempre uma parte de uma história, uma ação é sempre parte de uma história também. O que estou eu a fazer? A escrever um ensaio filosófico, a bater com os dedos nas teclas do computador, a olhar para um ecrã, a tentar atualizar o meu medium que andava às moscas, a desperdiçar a minha vida a pensar nestes assuntos. Posso entender a minha situação de diversas formas, através de diversas histórias. Mas qual será a história mais adequada para entender a realidade?
A força do determinismo vem justamente da nossa tendência a conferir uma autoridade epistémica enorme às ciências naturais, cuja ciência mãe é a física. Esta autoridade nos leva a pensar que a história que realmente acontece não é a minha história de ir comprar pastéis de nata porque sinto vontade, ou a história de qualquer outra pessoa. A história real é a da física, que é imparcial e universal, que observa os acontecimentos do ponto de vista de lugar nenhum. A autoridade epistémica da física confere prioridade ontológica à história que ela conta sobre a realidade. As histórias que nós experienciamos, em que somos livres, são meras ilusões.
Esta visão das coisas é apelativa porque evita o relativismo que seria fácil aceitar quando dizemos que eventos são histórias. Afinal de contas, o que realmente queremos é saber o que realmente acontece, não a minha interpretação do que acontece. Estas coisas podem ser diferentes e precisamos de alguma forma de superar o nosso ponto de vista (a nossa história das coisas) para aprender. A física nos oferece um ponto de vista que transcende as nossas histórias individuais (e ainda por cima com poder preditivo fantástico sobre o mundo natural). É compreensível que tantos adotem esta história como a realmente real.
O que eu pretendo defender, contudo, é uma resposta talvez um pouco anti climática. Qual a história mais adequada para entendermos a realidade? Depende do contexto. É importante lembrar que as histórias servem para entendermos a realidade. Se eu tenho um desentendimento com o meu irmão, em que as nossas histórias entram em conflito, qual será a melhor história para entender o que se passa? A da física? Não. Talvez não a história do meu ponto de vista, nem do ponto de vista dele, mas antes do ponto de vista da família. Dependendo da natureza do desentendimento, talvez a melhor história seja a que vê as coisas do ponto de vista da sociedade de uma forma mais ampla.
O fundamental é entender que podemos transcender o nosso ponto de vista tanto aproximando como distanciando a nossa perspectiva: a física pode contar histórias muito relevantes sobre o que acontece, mas a política também, a economia também, a minha experiência individual também. Devemos entender a realidade a partir da história que nos permita preencher a realidade de significado, não privá-la dele por completo.
Então é aqui que penso residir o livre arbítrio. Trata-se de uma disposição moral de escolher entre o bem e o mal, não da nossa relação com as leis da física. Somos livres para buscar ou não aquilo que nos transcende e nos preenche ao mesmo tempo. Quando agimos, será que fazemos o que fazemos por fraqueza ou por força de vontade? Será que vou comprar pastéis de nata por ceder a um impulso que eu sei que é supérfluo ou para celebrar um dia de trabalho bem conseguido? O exemplo pode não ter sido o melhor, mas espero ter transmitido a ideia.
Um ato de coragem, como o sacrifício que um herói de guerra faz da própria vida, é uma demonstração enorme da liberdade humana: apesar de todas as circunstâncias que o empurravam para o outro lado, o herói escolhe fazer a coisa certa. Um ato de covardia, como fugir do campo de batalha na noite anterior, é uma demonstração da nossa capacidade de não exercitar a liberdade que temos: deixamo-nos levar pelas tentações mais baixas, tomando o caminho que sabemos ser pior mas que não conseguimos evitar tomar.