Guarda Chuvas

Estava a caminho quando começou a chover, e lembrou-se: tinha-se esquecido do guarda chuva. É um objecto curioso, daqueles que têm mais presença na sua ausência. Como faz falta o guarda chuva, ou um guarda chuva: o Sr. M. notou uma grande diferença entre os dois. Agora que já estava condenado a um banho involuntário, em vez de procurar abrigo, resolveu continuar no seu trajecto (estava à procura do Silva, mas quem sabe onde aquele velho estúpido tinha ido parar?), e enquanto o fazia, teve tempo de observar as pessoas, todas prevenidas, com um ou com o seu guarda chuva. Em alguns casos o guarda chuva indicava a individualidade de cada pessoa, em outros, especificamente quando eram os típicos “pretos indiferentes”, só dizia que não se importavam muito com o que os protegia da chuva, desde que chegassem lá, do outro lado do seu caminho.
Sentia-se morto em comparação com todas as pessoas, com o seu conforto e pedaço de céu privado. Chovia tanto que parecia haver mais água no ar do que ar, e os guarda chuvas pareciam barcos invertidos, nos quais as pessoas boiavam de pés para o chão, enquanto M. afogava tranquilamente. Uma mulher passeava com um guarda chuva transparente, a sua vida um livro aberto — mas não ao ponto de resignação: o guarda chuva continuava a cumprir a sua missão, mantinha-a seca. Um gordo olhava para fora da janela, os vários (talvez cinco, seis?) guarda chuvas encostados em fila à parede, como numa vitrina, indicavam que ele também devia levar o seu. Apesar de representar o seco, indica chuva, um inconveniente: como o gordo detestava o seu tão fiel guarda chuva.
M seguia o seu caminho. Viu um homem que vendia guarda chuvas mas não usava nenhum para se proteger da chuva, provavelmente porque aqueles eram para serem vendidos, tinham outro propósito. Passou pela cabeça de M, então, além das intermináveis gotas de chuva, um pensamento: chamar guarda chuva a um guarda chuva era quase um sacrilégio. Estes tem muitas mais razões de ser, quase infinitamente imagináveis. Era como chamar faca a um canivete, embora ninguém realmente precise de um (ou do seu) canivete. Ele é útil, sem dúvida, mas não é essencial como o guarda chuva.
Finalmente a chuva parou, e foi substituída por um sol que, M não sabia ao certo se por mero contraste com a chuva e frio anteriores, ou por força intrínseca, parecia ter-se aproximado alguns milhares de quilómetros da Terra, e algo ainda mais notável sucedeu-se: pouquíssimos foram os que fecharam o guarda chuva antes de chegar a casa, pois, já que o sol incomodava tanto, limitaram se a transformar o guarda chuva em guarda sol. Guarda chuva guarda chuva guarda chuva, um homem chegou a casa, e ao entrar, passou a chacoalhar o seu, pois este tinha guardado um pouco da chuva consigo.
Depois de andar mais 2 horas ao sol, já completamente seco, mesmo sem ter desistido de encontrar o Silva, M voltou para casa, a pensar se repetiria o mesmo passeio outra vez, ou talvez outras mil, se pudesse.