Democracia e Individualidade

Raphael Mees
4 min readOct 25, 2024

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“Não é perfeita, mas é o melhor que temos”.

A democracia parece ser o melhor regime para uma população com alto nível de educação. Parece simplesmente um dado empírico que ditaduras, ou qualquer outra organização onde existe grande concentração de poder, só conseguem o mínimo de estabilidade com um povo altamente ignorante e complacente.

A relação entre a ignorância e o coletivismo é algo ainda um tanto misteriosa para mim. A minha tendência é pensar que o coletivismo é, por natureza, uma forma de pensar própria dos grupos menos educados — os menos autónomos, com menor capacidade de pensar por si próprios, individualizam-se menos. Menor individualidade significa maior semelhança entre os membros do grupo — a melhor base para uma cultura coletivista.

Parece-me que a educação gera sempre maior liberdade de pensamento. E liberdade gera sempre diferença. Duas pessoas livres podem decidir seguir o mesmo caminho, mas qual é a chance de cinquenta mil pessoas livres escolherem todas o mesmo caminho sempre? Pessoas livres divergem — tal é a consequência fundamental do nosso livre-arbítrio. E divergência não combina bem com coletivismo (a priorização do grupo face ao indivíduo).

Um grupo exige por parte dos indivíduos uma coesão em pelo menos alguns pontos fundamentais. Neste sentido, grupos “coletivistas” são absolutamente a norma. O estranho é que tenha surgido a ideia de um “grupo individualista”. A noção é quase oximorónica: um grupo cujo valor central com o qual todos concordam é que todos discordam — e devem poder discordar. Não parece muito sustentável.

E não obstante, o projeto democrático, cujas condições incluem uma população com um alto nível de educação e, portanto, vontade e até mesmo necessidade de se diferenciarem; é baseado precisamente neste equilíbrio subtil de forças opostas — o grupo e o indivíduo.

Liberdade o suficiente para discordar, compromisso o suficiente para manter o grupo unido. O paradoxo da tolerância mostra uma nova face: tolerar tudo é intolerante (tolerar a tolerância erode a própria tolerância), pelo que uma sociedade democrática, apesar de tolerar um alto nível de divergência, não pode tolerar os que não toleram esta divergência. O direito de discordar (de ser livre, neste sentido) é o princípio fundamental.

Mas aqui nasce outro paradoxo resultante desta tensão fundamental: a democracia é o regime que permite a individualização dos indivíduos, dando a cada um o poder de decidir por si próprio com agir e distribuindo o poder de decisão do órgão executivo nacional entre cada um dos cidadãos. Mas o problema é que o poder é de tal forma distribuído que chega mesmo a ficar completamente diluído — especialmente em casos de maior escala.

Numa democracia de 150 cidadãos, o poder de cada membro é relativamente palpável — este é o tamanho de uma assembleia de deputados hoje. Numa eleição com 150 milhões de cidadãos, o poder de cada um é tão pequeno, tão pequeno, que do ponto de vista estatístico, é literalmente equivalente a zero. O poder é tão diluído que deixa de existir, praticamente. Votar numa eleição presidencial, enquanto indivíduo, é pouco mais que comprar um bilhete de lotaria e torcer. A agência no processo de decisão é quase completamente outorgada.

Num país democrático, apesar de cada indivíduo ser livre, ele nem por isso torna-se menos impotente. Indivíduos, por conta própria, não fazem nada. Grupos, por outro lado, podem sim virar uma eleição. Se a decisão de um cidadão de mudar o seu voto é completamente inconsequente, a decisão de um grupo que represente uma fatia grande o suficiente do bolo, esta sim, pode mudar tudo. Em processos democráticos, o indivíduo só tem poder na medida em que pertence a um grupo.

Isto quer dizer que o poder de um indivíduo só existe na medida em que ele estiver disposto a abdicar das suas próprias convicções, pelo menos naquilo que são incompatíveis com as do grupo, para poder participar de uma entidade com real poder de decisão social. Ou seja, a democracia só faz sentido da ação política, só consegue tornar a participação cívica algo maior do que um desejar passivo, um atirar uma moedinha ao poço à espera de um desejo cumprido, quando permite a entrada do coletivismo de sopetão.

Aí está a tensão interna da democracia: é o sistema que encoraja a “liberdade” individual, a diferença indiferente; mas ao mesmo tempo premia o coletivismo e as identidades de grupo.

De um lado, existe o medo de que, com as divergências, as pessoas percam qualquer coisa em comum e deixem de se identificar como pertencentes ao mesmo grupo. Cada um faz o que quiser e quer lá saber do resto — o individualismo prolifera. Mas sem sentimentos de pertença e laços de grupo, por que razão vou eu morrer para defender a vida dos outros? A cultura individualista incentiva muito mais o fugir e safar-se, e que se dane o resto. E com isso, morre a nação que protegia a capacidade de este mesmo individualismo florescer.

Do outro lado, existe o medo de que, com a pressão que sentimos para pertencer e sentir que realmente participamos da sociedade, gerem-se divisões grupais cada vez mais marcadas, em que o coletivismo divide-se internamente numa competição por poder que, apesar de dotar as vidas políticas dos cidadãos de sentido, também simplifica as ideias em causa, para serem apelativas ao maior número possível.

Afinal, existe uma relação de compromisso entre profundidade de ideias e amplitude de alcance. Apenas ideias superficiais conseguem alcançar muita gente. Apenas ideias de muito alcance têm poder e fazem diferença. Se A, então B. Se B, então C. Apenas ideias superficiais têm poder e fazem diferença.

Eleições tornam-se campanhas de marketing e concursos de popularidade. Cada vez menos debatem-se medidas concretas nas eleições. Cada vez menos as pessoas sequer importam-se realmente com elas. A política tribal domina até mesmo os mais bem educados.

Ou indiferença, ou fanatismo superficial.

Estas parecem-me ser as opções no panorama democrático atual. E isto não é muito bom.

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Written by Raphael Mees

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