Democracia e Ideologia
Ouvindo as notícias bombásticas sobre as eleições em Moçambique, decidi investigar mais sobre a história política de lá. Fiquei surpreendido ao descobrir que o sistema democrático funciona em Moçambique de uma forma muito diferente de como ele funciona na Europa, por exemplo.
O tipo de sistema partidário com o qual estou habituado — e tinha sempre acreditado, por defeito, ser o único possível — organiza os partidos por ideologia política. Em Portugal, por exemplo, temos partidos de esquerda-centro (PS), direita-centro (PSD), esquerda liberal (BE), direita liberal (IL), direita conservadora (CHEGA) e esquerda radical (PCP). Cada cidadão decide qual a ideologia com a qual concorda e vota de acordo.
Mas em Moçambique as coisas são diferentes. Não existe grande diferença ideológica entre os partidos. Há apenas o “partido do poder” (FRELIMO) e “os partidos da oposição” — dentre os quais o maior é o RENAMO. As diferenças entre os partidos estão mais ligadas à história da instituição, lealdades proclamadas, associação de gerações com alguns partidos. Só recentemente o partido PODEMOS apareceu com uma proposta: descentralizar o governo — e as eleições foram aparentemente adulteradas. O partido do poder não podia abrir mão dele sem deixar de ser o que é.
Esta situação fez-me refletir. Aristóteles disse que o homem só pode fazer matemática e olhar para as estrelas, só pode filosofar e debater ideias quando as suas necessidades imediatas já estão asseguradas. A erudição é um luxo.
Aplicando a mesma ideia ao ramo político, faz todo o sentido que a decisão política com base em princípios e ideias é um luxo das populações que gozam de um nível de educação mais elevado.
Em países como Moçambique, onde grande parte da população ainda é analfabeta e vive abaixo do limiar da pobreza, até parece ridículo imaginar a possibilidade de uma democracia funcional. Quantas destas pessoas devem saber o mínimo para diferenciar entre medidas sociais, económicas ou internacionais acertadas ou completamente mal pensadas?É obviamente muito mais fácil manipular uma população assim, pensando da perspectiva dos integrantes do “partido do poder”.
Eu imagino que Platão, quando denunciou pela boca de Sócrates a democracia como o pior dos regimes possíveis, olhava para as condições materiais dos povos e via algo semelhante ao que vemos hoje em Moçambique. Pode ter parecido impossível imaginar um “povo” que não fosse, na sua enorme maioria, ignorante.
Não admira que Aristóteles tenha considerado a ação política um dos grandes privilégios do cidadão — sendo sempre bom lembrar que, no seu tempo, uma cidade com 500 cidadãos era muito grande. Ter tempo para a ação política implica ter dias livres: dias em que o trabalho é uma opção, não uma necessidade. Nestes dias, em que se pode ocupar com o que se bem entender, alguns cidadãos podem escolher participar da organização da sua sociedade.
Mas isto requer um investimento de tempo relativamente grande: saber sobre os processos por trás de tudo o que vemos acontecer é mais complexo do que pode parecer. Como aparece comida? Como não somos atacados? Como temos medicina, educação? Como temos dinheiro para sustentar isto tudo? Responder a estas perguntas exige muito conhecimento. Responder de forma inteligente, ainda mais.
Um dos grandes milagres da modernidade foi o aumento de riqueza trazido com a automatização da Revolução Industrial. Com o tempo, foi deixando de ser necessário o trabalho manual de grande parte da população para alimentar e abrigar uma sociedade. As máquinas aumentaram o nível de riqueza de alguns povos de tal maneira que literalmente todos os membros de algumas nações, simplesmente por viverem lá, já têm as suas necessidades básicas asseguradas para a vida.
Ou seja: todos os membros daquela nação podem dar-se ao luxo da erudição. Se antes isto possa ter parecido utópico, visto que a comida não cai do céu, agora é real — a comida cai das esteiras mecânicas. Podemos ter uma nação de doutores, filósofos, políticos.
Uma das grandes lições que podemos aprender com as tentativas modernas de o fazer é que, apesar de isto ser possível, nunca acontece. Por mais que o nível absoluto de condições materiais, educação e poder tenha aumentado, comparando as nossas sociedades ocidentais modernas com as sociedades ocidentais antigas; ainda é verdade que a mesma “estrutura de distribuição de poder” permanece. É impossível ter um grupo de 100000 pessoas onde todos têm o mesmo poder. Aliás, é impossível ter um grupo de 20 pessoas onde isto aconteça.
Naturalmente, as sociedades organizam-se de forma a eleger um líder, um grupo menor de pessoas importantes à sua volta e o resto, que apenas segue. Isto acontece mesmo quando, oficialmente, não deveria. Numa democracia, uma aristocracia/oligarquia vai-se destacar, sempre. Numa aristocracia, um líder vai-se destacar, sempre. Mesmo que oficialmente todos tenham o mesmo poder, na prática raramente é assim.
De forma semelhante com a erudição. Mesmo dada a possibilidade de uma sociedade de doutores, e mesmo o nível médio da educação de uma sociedade sendo alto; olhando para a sociedade por dentro veremos sempre uma maioria com muito menos e um grupo de elite com muito mais.
Mas ainda assim, este aumento em termos absolutos já é o suficiente para desprovar Platão: mesmo sem podermos ter uma nação de doutores, podemos ter uma nação de pessoas suficientemente bem informadas para fazerem decisões políticas com base em ideias.
Ou pelo menos assume-se que sim. Se as decisões, mesmo em países com alto nível de educação, são realmente feitas com base em princípios ideológicos ou questões de lealdade ou identidade de grupo, como acontece em Moçambique, é algo que deixo para investigações empíricas determinarem.