A ciência Metafísica e a existência de Deus em R. Collingwood
No tempo em que Robin Collingwood escreveu An Essay on Metaphysics, o mundo anglo-saxônico (e não só) sentia uma hostilidade bastante particular contra a metafísica. Foi neste tempo, no início do século XX, que o positivismo lógico viu o seu auge. Esta corrente de pensadores, impressionados pelos desenvolvimentos da física nos últimos dois séculos e por uma obra de Wittgenstein, defendiam que qualquer frase cujo conteúdo não for verificável empiricamente é: ou um jogo de palavras (como “nenhum homem solteiro é casado”) ou uma frase sem sentido nenhum.
Estes autores, portanto, dispensavam afirmações como “Deus existe” como algo sem sentido, já que Deus não é algo que possamos encontrar no mundo natural. A própria ideia de “Metafísica”, como uma ciência que estuda aquilo que está para além do físico, parecia completamente sem sentido. Em An Essay on Metaphysics, Collingwood apresenta uma visão diferente do que a Metafísica é, junto com uma nova interpretação do que realmente significa dizer que Deus existe.
- O QUE É A METAFÍSICA
Para dizer que a metafísica é uma ciência, antes de mais nada, temos de saber duas coisas: o que é a metafísica e o que é uma ciência. Começando pela última, Collingwood define ciência a partir de dois critérios. Uma ciência possui: i) um corpo sistemático e organizado de pensamento e ii) um assunto ou objeto de estudo definido.
O assunto de qualquer ciência é abstrato ou universal. Não existe uma ciência de uma rocha em específico, mas existe a ciência das rochas em geral (a geologia). Esta universalidade é sempre sujeita a graus: o abstrato “número”, por exemplo, é dividido entre outros abstratos, “pares” e “ímpares”. Estas noções, apesar de também serem abstratas e universais, pressupõem a noção de “número” para existirem. Do ponto de vista da aprendizagem, as ciências mais abstratas vêm depois: começamos a aprender partindo do mais particular em direção ao mais abstrato. Do ponto de vista lógico, contudo, os universais vêm primeiro: as ciências mais gerais são o fundamento das mais particulares.
Todos os universais manifestam este padrão: cada padrão é parte de um padrão maior e assim sucessivamente, até que se forme um único padrão completamente universal. Qualquer universal dentro deste esquema funciona assim, mas o sistema não é infinito, pelo que há de existir extremidades no topo e na base. Este tipo de sistema foi concebido pela primeira vez por Porfírio, filósofo grego do século III D.C.. Porfírio organizou uma escala do ser dividida em “géneros” e “espécies”, a chamada “árvore de Porfírio”: os géneros são divididos em espécies, que são divididas em sub-espécies, tornando-se géneros destas espécies menores. Na base do sistema temos espécies infima species, que não geram sub-espécies subsequentes. No topo temos o summum genus, o género que não é espécie de nenhum género, ou seja, o género maior a partir do qual tudo o que é/existe se divide.
As ciências organizam-se da mesma forma: se temos um género único no topo do sistema de universais, e uma ciência que estuda cada um destes universais, então também deverá existir uma ciência que estuda o universal mais abstrato de todos, uma ciência do summum genus. Esta ciência é a metafísica. Mas então a metafísica pode ser vista de duas formas diferentes. A primeira é: “A metafísica é a ciência do ser puro”. A segunda é: “A metafísica é a ciência que estuda as pressuposições das outras ciências”. Para Collingwood, todas as confusões sobre a metafísica enquanto ciência acabarão quando for entendido que a primeira proposição é falsa e a segunda é verdadeira.
Como já foi dito, as condições estabelecidas para que algo seja considerado uma ciência são: i) um corpo sistemático e organizado de pensamento e ii) um assunto ou objeto de estudo definido. Ora, uma ciência do ser puro, por mais que satisfaça i), falha em ii). Não se pode definir um objeto científico desprovido de qualquer peculiaridade que o diferencie do objeto de qualquer outra ciência. Toda a ciência estuda as peculiaridades de um grupo definido e distinto do resto de tudo o que é. Mas o universal do ser puro representa o caso limite do processo abstrativo, já que não faz qualquer distinção e inclui tudo. E se não distinguimos nada, não há peculiaridades para a ciência estudar — logo, não há ciência.
Collingwood decide chamar “ontologia” a esta ciência do “ser puro” (note-se que isto é uma definição de Collingwood e que muitos outros autores entendem coisas diferentes, embora semelhantes, por “ontologia”). Assim, para ele, ontologia é o nome do erro cometido por tantos filósofos anteriores: a tentativa de fazer uma ciência do ser puro. Isto não quer dizer que o trabalho feito por filósofos sob o nome de ontologia seja inútil: o trabalho pode ser verdadeiro e valioso, mas apenas enquanto contém (o que Collingwood entende por) metafísica — é preciso distinguir o que os filósofos fazem do que eles acham que fazem.
Ora, se as definições que temos de metafísica são, desde o seu início, uma ciência do ser puro e uma ciência que estuda as pressuposições de outras ciências; e sabemos que a primeira definição é falsa, devemos entender a metafísica pela segunda. E é precisamente isso que Collingwood faz.
1.a) A Ciência das pressuposições absolutas
Então a metafísica deve estudar a(s) pressuposição(ões) mais abstrata(s) de toda(s). O problema que aparece é que o método da metafísica não pode ser o mesmo das outras ciências. Entendemos melhor o porquê analisando a teoria das proposições que Collingwood fornece.
Uma proposição é uma resposta potencial a alguma pergunta. Todas as perguntas envolvem pelo menos uma pressuposição — normalmente, muito mais do que uma (as pressuposições em causa são puramente lógicas: para uma pergunta fazer sentido, as suas pressuposições não têm de ser feitas conscientemente e nem mesmo têm de ser verdade). Da mesma forma que conceitos universais menos abstratos só fazem sentido se pressupusermos os conceitos mais abstratos, perguntas científicas sobre universais menos abstratos só fazem sentido se pressupusermos respostas a perguntas logicamente anteriores. Assim, só podemos investigar sobre a verdade ou falsidade de teoremas geométricos se as verdades matemáticas forem inquestionáveis. No âmbito da geometria, não faz sentido procurar saber se os teoremas matemáticos são verdade ou não: eles são pressupostos.
Mas as pressuposições de uma pergunta podem, por sua vez, ser respostas a outras perguntas ainda mais abstratas, tornando-se então proposições. As pressuposições que também podem contar como proposições são chamadas por Collingwood de pressuposições relativas. Se houvesse apenas pressuposições relativas, o nosso sistema de conhecimento seria baseado num regresso infinito de pressuposições, sendo, portanto, circular. Mas existe um outro tipo de pressuposição, a pressuposição absoluta. Ao contrário das pressuposições relativas, a pressuposição absoluta não pode ser vista como uma proposição — não podendo, deste modo, ser considerada verdadeira ou falsa. Literalmente não faz sentido questionar sobre a existência de razões para acreditar naquilo que é pressuposto absolutamente — a própria capacidade de fazer esta inquisição pressupõe a pressuposição absoluta desde o início.
A metafísica, diz Collingwood, é o estudo das pressuposições absolutas. Mas em vez de determinar quais pressuposições absolutas que fazemos são corretas e quais não são (algo impossível de ser feito, pela própria natureza destas pressuposições, e que ele considera “pseudo-Metafísica”), o metafísico determina quais são as pressuposições absolutas feitas. Assim, o objeto de estudo do metafísico é a sua variação ao longo da história da humanidade — o trabalho é de análise e interpretação, não de busca pela resposta certa. A metafísica é uma ciência social, um exercício histórico de compreensão das ideias que alimentaram as mentes de tempos passados — e até mesmo das ideias que alimentaram as nossas próprias mentes, que estão num passado mais recente. Entender as coisas, com efeito, pressupõe um entendimento do nosso entendimento das coisas — e este entendimento é por natureza histórico.
A metafísica também não é uma ciência dedutiva: não podem existir relações de implicação lógica entre as descrições das pressuposições absolutas por causa da natureza dos factos históricos. Um facto histórico não envolve apenas uma pressuposição absoluta, mas toda uma constelação delas, ligadas de várias formas e feitas ao mesmo tempo — não deixando deste modo de constituir apenas um único facto. Isto implica que as pressuposições de uma constelação são “consuponíveis”: o que a metafísica requer é que seja logicamente possível que as pressuposições absolutas sejam feitas juntas. Não existe nenhuma necessidade de que a suposição de uma pressuposição exija logicamente a suposição de todas as outras. Com efeito, isto seria impossível: se uma pressuposição absoluta é consequência lógica de outra, então a primeira não é uma pressuposição absoluta e sim relativa.
O objetivo do metafísico não é fundar uma escola, mas elaborar as pressuposições absolutas feitas pelos cientistas do seu tempo — ou de outros tempos, já que um metafísico, como historiador que é, pode escolher estudar outra fase da história das civilizações. O crucial no estudo das fases é entender como cada uma delas está contida na que lhe precede e como ela contém as sementes da fase que lhe sucederá. O estudo do metafísico então não é apenas estudar a compossibilidade de pressuposições absolutas, mas os processos que tornam uma constelação em outra.
2. A PROPOSIÇÃO “DEUS EXISTE”
No meio filosófico de Collingwood, os maiores adversários da Teologia e da metafísica eram os positivistas lógicos, que negavam categoricamente a existência de Deus ou o sentido de qualquer afirmação que se encaixasse no que eles entendiam por “metafísica”. A maior motivação dessa rejeição radical era proteger as ciências naturais, que eles pensavam ser incompatíveis com doutrinas metafísicas como a da existência de Deus. O que Collingwood pretende mostrar, através de um estudo histórico, é que a ciência natural, na verdade, pressupõe a existência de Deus.
Quando os positivistas negam a existência de Deus, o que eles querem negar é a existência de um ser, mais ou menos como os seres humanos no que toca aos seus poderes mentais e disposições, mas infinitamente mais poderoso. Este entendimento de Deus, no entanto, não encaixa de todo com o que qualquer teólogo Cristão fez da divindade em que eles acreditaram ou acreditam. A literatura Patrística de teologia entende Deus como uma pressuposição do pensamento feito por Cristãos, e a sua relação com as ciências naturais é um tópico frequentemente abordado.
Dizer que “Deus existe” é uma proposição metafísica é fazer a afirmação histórica de que esta foi uma pressuposição absoluta feita por cientistas numa certa época, de forma que a sua prática científica ateste a esta pressuposição. Para explicar o que os Cristãos de tempos antigos queriam dizer quando diziam que acreditavam em Deus, é preciso examinar o contexto em que isto era dito. A análise histórica de Collingwood para o surgimento da ciência natural passa por três fases: sociedades “totémicas”, a Grécia Clássica e a Teologia Aristotélica e o Cristianismo.
2.a) Sociedades “totémicas”
Antes de mais nada, Collingwood faz questão de enfatizar que todos os sistemas de classificação da realidade humana são criados e não descobertos — eles são fundamentados por suposições, não proposições. Assim, até mesmo a ideia de que existe um mundo natural, isto é, um mundo que não pode ser afetado pelo ser humano, em oposição ao mundo artificial, das artes, que pode, teve de ser pressuposta. O mesmo se passa também com a ideia de um mundo natural como dividido em vários reinos naturais. Ambas estas ideias tiveram de ter uma origem, de serem pressupostas. Como estas bases do nosso pensamento são algo que não podemos confirmar, surgiu a necessidade de instituições que retivessem estas pressuposições.
Collingwood argumenta que em sociedades mais rudimentares, quando o hábito de classificar as coisas de acordo com as suas semelhanças e diferenças surgiu, as práticas religiosas foram afetadas por isso. Estas são as sociedades “totémicas”, onde o estudo do mundo natural não era dotado da unidade lógica anterior que hoje em dia o nosso estudo tem. As ciências em sociedades deste tipo seriam departamentalizadas mas de uma forma completamente fragmentária, sem a ideia da dependência mútua das ciências. Não era imaginável que um cientista de uma área, como a biologia, fosse ser de qualquer utilidade em outra, como a medicina. Isto porque a ideia de que a natureza é uma ainda não tinha sido pressuposta com a mais absoluta certeza.
2. b) A Teologia de Aristóteles
Do que temos de evidência sobre a ciência grega, por volta dos séculos 7 e 6 antes de Cristo, somos levados a pensar que existia já um certo nível de maturidade científica. Apesar de a religião grega ser politeísta, os filósofos gregos a partir de Tales quase uniformemente pregavam uma religião monoteísta, indo conscientemente de encontro às autoridades e costumes do seu tempo. A sua religião monoteísta, com efeito, caminhava de mãos dadas com a sua ciência monomórfica: o objetivo desses filósofos era mostrar o mundo como uno. É com isto em mente que podemos entender o valor da contribuição filosófica de Tales ao dizer que tudo é feito de água: para nós isto pode soar bobo, mas apenas porque nós já somos herdeiros da tradição científica do Cristianismo, que adota a resposta grega ao problema que Tales foi um dos primeiros a perceber: o problema do uno e do múltiplo.
Todo o trabalho científico moderno depende da pressuposição absoluta de que a natureza é una e a ciência também: que todos os reinos da natureza são governados por um único código de leis absolutamente idênticas, as leis da matemática, de forma que as várias ciências que investigam os vários reinos da natureza não são ciências completamente distintas, mas variações da mesma coisa, aquilo a que chamamos “ciência natural”. Assim, quando Tales afirmou que tudo era feito de água, era por este princípio, agora tão facilmente tomado por garantido, de que existe uma coisa que é a natureza, e uma coisa que é a ciência natural.
Para Aristóteles era claro que a ciência natural tinha de ser acompanhada de uma teologia para que se possa afirmar tanto a unidade da natureza como a multiplicidade das ciências que a estudam. Então, na Metafísica, Aristóteles afirma que o mundo da natureza é um mundo de movimentos que acontecem por si próprios. Não só isso, mas existe apenas um Deus, que é perfeito e que as outras coisas na natureza procuram imitar. Deus é mente, pelo que os movimentos das coisas naturais só podem imitar Deus na medida em que podem imitar a atividade da mente — isto é, atividade racional. Assim, todos os movimentos no mundo natural são racionais. É apenas unindo a esta ideia a noção de que racional é aquilo que acontece segundo leis, que podemos entender a ideia de leis naturais.
2. c) O Cristianismo
Quando Aristóteles diz que Deus não criou o mundo, ele assume que a existência da natureza não é uma pressuposição da ciência natural, mas um facto observado: quando usamos os nossos sentidos, ganhamos conhecimento do mundo natural. É aí, diz Collingwood, que reside o seu erro: Aristóteles não sabia que os nossos sentidos não nos podem informar que o que nós percepcionamos através deles é um mundo de coisas que acontecem por si próprias e não podem ser controladas pela nossa arte. Para que a ciência natural possa existir, a existência do mundo natural (e portanto a distinção entre um mundo natural e um artificial) tem de ser pressuposta — e não observada. Este erro metafísico foi corrigido pelo Cristianismo.
A ciência natural como a conhecemos só é possível se considerarmos a natureza como una. Só podemos considerar a natureza como una se pressupusermos que existe um mundo natural. Isto é uma proposição metafísica, e já que a metafísica e a teologia são uma e a mesma ciência, todas as pressuposições absolutas são crenças acerca de Deus, e o acto pelo qual as mantemos é o de fé religiosa. Assim, a existência do mundo natural tem de ser vista como um atributo ou atividade de Deus.
Ora, uma vez que a ideia de movimento está contida na ideia de um mundo natural, a existência de movimento (agora que sabemos que ela não pode, tampouco quanto o mundo natural, ser meramente observada pelos sentidos) é uma proposição metafísica. Assim, é essencial que o movimento do mundo seja incorporado na teologia, nomeadamente com a ideia de que Deus, ao criar o mundo, colocou-o em movimento. Assim, a metafísica Cristã regista uma diferença marcante com a teologia Aristotélica: enquanto que para Aristóteles o movimento acontece por si próprio, de forma que o mundo só se move para imitar a natureza racional de Deus; na teologia Cristã ser o criador do movimento no mundo natural é tanto parte da natureza divina quanto ser a fonte da ordem diversa que encontramos nele.
A “Fé Católica”, como apresentada pelos Patrísticos, não é mais do que uma análise metafísica mais precisa e adequada do que a metafísica pagã que ela procurava substituir. No mundo Greco-Romano a confusão metafísica era tal que passou a haver confusão quanto a quais eram as pressuposições absolutas realmente feitas. Como a metafísica e a ciência de um povo são inseparáveis, erros e confusão metafísicos levaram a erros e confusão na ciência — isto é, nos diferentes modos de pensamento organizado, sejam eles teóricos ou práticos, que compõem uma civilização.
Assim, para evitar o erro que levou ao fim e ao cabo à ruína do mundo Greco-Romano, a recomendação é que adotemos a “Fé Católica”: nós veneramos um Deus em trindade, e a trindade é uma unidade: Pai, Filho e Espírito Santo são um e o mesmo, mas ainda assim distintos. Crer no Pai é crer (apenas com referência ao procedimento da ciência natural) que existe um mundo natural que é sempre e indivisivelmente um. Crer no Filho é pressupor absolutamente que este mundo é composto de múltiplos reinos naturais. Crer no Espírito Santo é pressupor de forma absoluta que o mundo natural não é apenas um mundo de coisas, mas também de movimento.
3. CONCLUSÃO
O que Collingwood pretende demonstrar com este estudo metafísico não é que Deus existe, mas sim que a sua existência foi pressuposta pelos Patrísticos e pelos povos e instituições que deram origem à ciência natural como a entendemos. Isto não significa que a existência de Deus seja inevitável para qualquer um em qualquer momento, ou que depois da Revelação Cristã alguma verdade eterna tenha sido descoberta. Uma pressuposição absoluta não é uma pressuposição eterna. Aliás, se a prática da ciência hoje em dia ainda pressupõe a existência de Deus é uma questão para um historiador da ciência dos nossos tempos, questão esta que permanecerá sempre em aberto.