A cidade dos anjos caídos no sono

Raphael Mees
3 min readJun 2, 2021

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“O sonho é o escapismo mais natural, ninguém consegue viver a vida real 24 horas por dia”, pensou B. “Mas terá realmente pensado aquilo? Não… acho que foi um sonho”. Conduzia à beira da praia em Las Vegas: o céu rosa escuro, por trás, as silhuetas das palmeiras e os neons, turvos e chocantes (como as luzes nas costas das nossas pálpebras quando vamos dormir), nem parecia real.

“E por que raios penso em mim próprio na 3a pessoa?”, pensou ele. “Como se fosse uma personagem, como se isto não fosse verdade.” Mas se só somos personagens nas ficções, somos personagens nos sonhos? Se sim, porque não na vida real?

B. tinha sérios problemas com o sono, quase nunca dormia e não sabia por quê: se era por vontade própria ou porque não conseguia. É mais um daqueles ciclos viciosos: para quem não dorme, a vida real vai-se sonhificando: o foco e atenção ao detalhe nas coisas diminui, e a capacidade de questionar o que acontece desaparece. Num sonho só se sabe continuar. Nunca na vida tinha B. parado a meio de um sonho para se perguntar: “Mas porque é que estou a conduzir a tarde toda em vez de trabalhar? Porque não durmo? Porque não faço nada quanto a isto? Estou realmente a pensar nisso?”.

Não, num sonho nos só continuamos, e a sonhificação progride: os intervalos entre sonho e vida real diminuem, e B. já dormia 2 horas de 4 em 4, e uma vida se dilui na outra, cada vez mais.

“Las Vegas, a cidade dos anjos”, e B. parecia dormir com eles. Vivia no mundo da lua: “será que é lá que os anjos vivem?” Não, os anjos vivem aqui, Las Vegas é a cidade da lua, orbitando a vida real dos mortais, como B.

“Então se nós somos personagens nos sonhos, morremos quando acordamos”, sem lembrar de quase nada da própria vida, e o interesse é tão pouco que uns minutos depois já não faço ideia: já estou noutro sonho, que vai ser esquecido no próximo. “Las Vegas é horrível.”, tanta informação ao mesmo tempo torna impossível processar tudo, ainda mais para quem está sempre com sono: tanto nos sonhos como na vida real.

Não tinha parado de conduzir, e olhou para o mar, também cor-de-rosa (por causa do céu), por trás das sombras pretas das palmeiras, e viu a sombra da lua, muito mais bonita que a original. “A sombra não tem forma, é só um vazio de luz”. Sem dúvida, muito mais bonito que qualquer coisa de fora da caverna.

O jogo de sombras da lua é um espetáculo maravilhoso, hipnotizante: o incerto atrai muito mais, o indeterminado não está sujeito a juízos de valor, “porque ainda não aconteceu, ainda não acabou, eu nem sei se é real”, sei lá se é bom ou mau, sei lá se consigo parar, sei lá se quero…

B. não sabia se tinha saído do carro, e antes de acordar, teve um momento de lucidez: “Se a minha vida é mais sonho que outra coisa, deixa de ser real? Será um desperdício gastar a vida toda nessa incerteza nostálgica?”

Acordou, era fim de tarde, tentou pensar no que tinha sonhado e concluiu, ambiguamente, como já tinha milhares de vezes antes: “Não sei…”

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